terça-feira, 5 de junho de 2007

Coisas de miúdos


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Éramos cinco ou seis, muito novos, aí com 7, 8 anos, no bando dos desocupados de verão. Para falar verdade, eu seria o único verdadeiramente livre e, por força desse meu estatuto, os outros libertavam-se de muitos afazeres.

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Podíamos ser mais, mas aos outros era mais difícil escapar às obrigações. Entre estes figurava o Horácio, mais velho do que nós dois ou três anos e único homem em sua casa, desde que a mãe enviuvara.

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Cabia-lhe tratar das cabras, umas dez, que o seguiam para qualquer lado, com uma confiança e obediência que aos cães faria inveja. Isso explicava-se com o carinho do trato, quer acompanhando-as nas tapadas, quer acomodando-as na corte. Para ele, a Escola era apenas uma casa, onde nunca entrara.

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Era sabedor, o Horácio. Nenhum segredo lhe fechava a porta. Quando ouvia o canto de uma ave, nomeava-a de imediato e desfilava um sem número de informações, sem sequer desviar o olhar em sua perseguição: a cor das suas penas, o formato do bico, se era portadora de sorte ou azar, e muitas outras banalidades que, na sua boca, tinham perfume de grande sabedoria.

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Não se ficava pelas palavras. Nos silvados, era ele quem se esgueirava por entre os picos, para cortar, com um canivete, as tenras e doces pontas das silvas, depois ternamente aproximadas da boca das suas “meninas”, que não se faziam rogadas.

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Poucas vezes se juntava às nossas brincadeiras, antes nos aproximávamos quando nos cumprimentava, de partida para os montes ou no regresso, conforme o dia se mostrava ou desfalecia, escurecendo. No primeiro caso, seguíamo-lo durante algum tempo, ávidos de beber as preciosidades que jorravam da sua prosa. Se voltava para casa, era ele que parava e conversava um pouco, antes de recolher o gado.

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Já o Luís era um postal, como dizíamos à época. Falava com ênfase, usando vocabulário e fraseologia rebuscada, que ia apanhando nos restos do jornal que era usado na venda, para embrulho. Não lia mal de todo, muitas vezes a meia voz, embora sempre juntando as sílabas uma a uma, o que o obrigava a níveis de concentração muito elevados.

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Uma das tardes em que o Horácio voltava do pastoreio, estávamos todos sentados no muro da Ti Júlia, perto de um plátano bastante alto, a preguiçar e a contar as horas para a janta. Porque lobrigou alguns rebentos recentes, lá no alto, fez o que já todos tínhamos antes apreciado, noutras alturas: trepou de forma rápida, descansada e elegante, como só ele sabia, para voltar alguns segundos depois com a paparoca favorita das suas cabras. Estas tinham ficado perto, apreciando os dotes do dono, mas menos do que aquilo que aí vinha.

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Enquanto as alimentava, ia explicando porque aquelas folhas eram boa comida. Mostrava as nervuras, partia um ramo para exibir o suco, chegava mesmo a dar-nos a provar um pedacito para comprovarmos o sabor agridoce que o caracterizava.

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Se havia coisa que o Luís não aguentava era outro qualquer ser mais eloquente ou mais sabedor do que ele, fosse no que fosse. Não sabendo nada do assunto em causa, era seu costume introduzir nova temática, de rompante, para tomar o seu lugar no centro das atenções.

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Nessa tarde não foi diferente. Ainda com restos de suco de rebentos de plátano nos lábios, sem saber muito bem como tirar aquele sabor da boca, o Luís partilhou connosco uma das últimas novidades que tinha ouvido, há poucos dias. O Papa, segundo ele, era um dos maiores sábios do mundo. Pouca gente conseguia fazer o que ele fazia – onde quer que fosse, falava a língua desse país. Ninguém falava tantas línguas como ele! Não era assunto de todo desinteressante, pelo que todos prestámos atenção ao discurso.

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Não durou muito mais. O Luís resolveu concluir o assunto usando uma teoria muito sua e um termo erudito. O Papa, disse ele, porque falava tantas línguas estrangeiras, só podia ser também um estrangeiro, não havia dúvidas! Mais, alguém que fala tantas línguas é um verdadeiro … (o esforço para se lembrar da palavra era intenso e estava estampado no rosto, sisudo, circunspecto e fechado) um verdadeiro … antropófago! É isso, um verdadeiro antropófago!

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Com um ar fulminante de triunfo, virou costas e abalou para casa. Não ia sozinho – as gargalhadas do Horácio, junto com os berros solidários das cabras, acompanharam-no durante umas centenas de metros. Foi a chorar de riso que nos disse o que significava aquele epíteto – que aprendeu quando o Dr. Moura Bastos, o médico mais conceituado da terra, lho explicou e disse que havia gente assim, em África.

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1 comentário:

Eu disse...

Fartei-me de rir... Fez-me recordar uma situação engraçada: eu e o Rui fomos uma agência de viagens, estavamos a ser atendidos por um daqueles vendedores arranjados à pressão (chato e sem qualidade), a certa altura o sujeito ao querer dizer que não era poliglota, diz que não é polígamo...choramos a rir...