segunda-feira, 30 de abril de 2007

O tempo não tem tempo a perder

Fosse a tua vida três mil anos e até mesmo dez mil, lembra-te sempre que ninguém perde outra vida que aquela que lhe tocou viver e que só se vive aquela que se perde. Assim a mais longa e a mais curta vida se equivalem. O presente é igual para todos, o que se perde é, por isso mesmo, igual, e o que se perde surge como a perda de um segundo. Com efeito, não é o passado ou o futuro que perdemos; como poderia alguém arrebatar-nos o que não temos?
Marco Aurélio

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Machos

Era muito novo quando ouvi falar, pela primeira vez, dos resultados da acção do homem na natureza. Todos gabavam o milho híbrido, afirmando que a produção mais que duplicava, se usado em vez do milho comum.

Os lavradores, com a vida dependente de inúmeros factores, produziam milho para consumo e venda, mas não deixavam de guardar parte da colheita como garantia da produção futura, destinada à sementeira da primavera seguinte. Com esta solução, até essa garantia deixava de ser necessária.

O meu tio Ezequiel torcia o nariz a estas modernices. Sendo uma pessoa de convicções fortes, não mudou para os novos produtos de sulfatagem da vinha, mantendo-se fiel ao sulfato de cobre, até ao fim. Também o milho híbrido sofreu com esta forma de ser. Só depois dos outros o usarem durante anos, ele aceitou experimentar a receita. No entanto, lembro-me que, nos primeiros tempos da experiência, apenas o usava no milheiral destinado à alimentação do gado, não o querendo para consumo próprio ou para venda.


Uma das áreas de ensaio humano a que aderiu, desde sempre, centrava-se na produção dos machos, cruzamento de cavalos com burras. Tinha a convicção que, para trabalhos duros, eram os melhores. Por isso, sempre que o negócio lhe interessava, comprava machos e preparava-os para o trabalho. Fazia-o de forma diferente do que víamos nos filmes, pois o único método similar consistia no volteio, ou seja, fazer o cavalo (ou o macho, como é o caso em apreço) andar em círculos, no extremo da corda que o prendia, com a outra ponta segura na mão do dono.
Tudo o resto era bem mais suave. Numa primeira fase, em passeio com corda curta ou ainda no volteio, era uma criança que montava o animal, em pêlo e segurando-se nas crinas (eu fiz este trabalho várias vezes, tendo sempre mais prazer que medo). Depois, já com sela e rédeas, repetiam-se os passeios e os círculos, ainda com alguém muito jovem. Só depois de semanas de treino o meu tio o montava, em estrada de terra, plana, não fosse o diabo tecê-las. Normalmente, pouco animação havia. O cavalo aceitava, com alguma naturalidade, a nova condição e o meu tio começava a pensar onde o iria negociar, por um valor consideravelmente mais elevado.


Mas não era só nesta função que o meu tio os trabalhava. Também nos vícios que traziam actuava, procurando acabar com eles, já que desvalorizavam o seu preço. Porque tinham esses vícios, comprava-os bem mais baratos do que os vendia, quando conseguia que desaparecessem. Não tenho memória de falhanços, nesta matéria.


Um dos machos que passou por lá tinha uma dessas particularidades, condicionadoras do seu valor – escoiceava tudo e todos que se atreviam a passar pela sua traseira. No dia da sua chegada, fomos todos alertados disso e proibidos de nos aproximarmos dos pés do bicho – para o meu tio, não havia patas, antes mãos e pés, e era assim que se lhes referia.
Não demorou o “tratamento”; o meu tio, como quem não queria a coisa, assobiando, passava por trás do macho, lentamente. Se este ficasse imóvel ou recolhesse os pés, para perto das mãos, ele continuava a andar, sem parar. Pelo contrário, quando afastava, para fora, os pés, o meu tio reagia de imediato e com brutalidade, pontapeando-lhe os casco com os seus socos, duros e pesados. Explicava-me, nessa altura, que o coice era assim preparado, para que a força usada atingisse valores máximos, com a rápida mola que daí resultava – os cascos recolhiam à barriga e saíam, disparados, em direcção ao incauto que se atrevia a transitar por ali. Se, pelo contrário, os recolhesse para escoicear, pouca força sairia, no movimento simples de dentro para fora. Logo, quando os recolhia, mostrava mais medo de quem passava do que vontade em agredir. Também me justificava o seu método, bem mais violento do que gostaria: "se levares uma patada, percebes que esta é uma linguagem que o cavalo entende bem, pois recebe aquilo que se preparava para dar – muita dor".


Gostava muito dos cavalos do meu tio, fossem machos ou não. Também este maníaco do coice sentiu essa minha forma de ser. Nos momentos mais complicados, em que o castigo era aplicado, aproximava-me do seu focinho, com milho numa mão, que abria só quando estava perto da sua boca. Sendo um petisco muito apreciado, os seus dentes apanhavam todos os grãos, que comia com prazer sofrido. Acenava sempre um agradecimento, com os olhos muito brilhantes, não sei se da dor ou do prazer.


Ao fim de uns meses, foi vendido a um moleiro, que o queria para o transporte da farinha. Só o voltei a ver uns dois anos depois, na vila. O moleiro passou por mim, sem parar e, dos três ou quatro animais que o seguiam (sem corda, o que demonstrava o bom treino recebido), um desviou-se do caminho e dirigiu-se-me, acenando com a cabeça e encostando-a ao meu peito. Intrigado, porque o não reconheci de imediato, acariciei-lhe o focinho. Só quando vi as sacas brancas, associei os dados. E ainda tive que explicar ao moleiro a razão daquele comportamento do seu melhor macho, como me informou. Conhecedor profundo destes animais, o moleiro tirou alguns grãos de milho de uma das sacas e deu-mos, para eu poder repetir o acto que nos uniu.



Vê-lo a ir embora foi um dos momentos mais marcantes desse tempo. Também me marcou saber que os machos não são capazes de se reproduzir, pois todos são estéreis. Sinto, mais que sei, que esta é uma resposta da natureza à intromissão do homem no seu curso normal. Face às notícias do avanço científico na genética, espero que outras respostas naturais surjam, rapidamente. Para nosso bem.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Crescimento e maturidade

Fui politicamente instruído de forma célere e enquadrada. Na minha turma, em 74/75, dois colegas dominavam a matéria, centrando-se no trotskysmo, doutrina que reproduziam com entusiasmo e profundidade. Aprendi, rapidamente, a desprezar os revisionistas (o que era difícil, porque alguns eram bons amigos), a desconfiar dos maoistas (com quem simpatizava, pela forma empenhada da sua militância) e a odiar os estalinistas - que diabo, Trostky, herdeiro de Lenine, foi morto, no México, a mando de Staline, o usurpador!
Aprendi a conhecer a 4ª Internacional sem fazer ideia se houve outras, antes. Descobri que a social-democracia russa propunha uma visão comunista da sociedade e que a dominante na Europa nada tinha a ver com a de Francisco Sá Carneiro.

Para me libertar destas amarras ideológicas, aderi à FSP – uma espécie de alter ego do PS, menos intelectual que o MES, o partido da esquerda festiva. Manifestações, comícios, colagem de cartazes, reuniões e doutrinação passaram a ser actividades normais, do dia-a-dia. Namorar, também.
Recordo com carinho a mistura dos mundos. Ela trabalhava paredes-meias com a sede, eu fazia horas com panfletos e treino de guerrilha urbana. Às sete, ela despegava, eu transitava de um idealismo para outro. Não sei se a encontrei por força da causa, se aderi ao partido pela proximidade. Mas adorei todos os bocadinhos, com ela e com ele.
Fui parte activa no verão quente (1975). Ajudei, sistematicamente, a engrossar a participação popular. 20 de Setembro, 11 de Março, 25 de Novembro não são só datas. São acção, participação, gozo e frustração. Pires Veloso, Corvacho, Otelo e os 9, Vasco Gonçalves e Mário Soares não são só nomes. São referências, prós e contras, gritos e convicções.
É nosso costume avaliar o que fomos e o que fizemos, quando a maturidade nos atinge. Também o faço, com regularidade. Tive uma arma na mão, fui dado como gravemente ferido, assaltei uma sede e trouxe uma cadeira e um tapete de recordação. Disparos de G3, por cima da minha cabeça, acertando e marcando a parede a uns escassos metros do local onde me abaixei, também estão registados na minha mente. Explodiram cocktails molotovs aos meus pés e estufei o peito em direcção a contra-manifestantes. Tudo vivi com pleno e excepcional gosto. Tudo faria, de novo, se o tempo o permitisse e se as condições fossem similares. Não me vejo a fazê-lo, aqui e agora.




Mas não abusem, não prometam sempre um mundo novo, só por prometer.

É que pode querer o povo um mundo novo a sério.

sábado, 21 de abril de 2007

Este sou eu, no fim do ciclo que me levou a Celorico. Com 17, 18 anos, deixei de passar férias na aldeia, na minha aldeia, e passei a visitá-la, com alguma frequência, o que ainda faço.



É a minha faceta citadina, viciosa, confortável. A troca da levada, canal aberto na encosta das serranias, por onde corre a preciosa água para a rega dos campos, pela praia de Francelos, de areia fina e clara, com o vento sempre presente e, quando não insuportável, mitigador do sufocante sol de verão.


Ali, corre a levada. Sempre que se aproxima de um dos seus destinos, as leiras de um lugar, aparece uma abertura no canal, onde uma tábua, calafetada com torrões, impede a água de parar, nos dias em que pertence a outro. São as portas do Barroco, da Corujeira de Baixo, da Corujeira de Cima, das Casas Novas, todas a significar um rasgo no caminho que acompanhada a levada, um espaço mais ou menos largo, que tinha que ser ultrapassado com um salto.


Cá, tinha as deliciosas viagens de comboio, apinhado, com amigos e cúmplices, em direcção ao sul, num tempo curto que nos despeja ainda longe das ondas, imponentes e refrescantes, algumas vezes em demasia. Passear junto ao mar, nadar na serena baixa-mar, mergulhar, atravessando as ondas da maré-alta, olhar o belo sexo ou dormitar ao sol, são prazeres merecidos.


Já por lá, o Tejo, de tons cinza, tinha dado lugar ao Farruco, pequeno rafeiro algo medroso, mas de uma lealdade incontornável. Se daquele recordo o temor sentido enquanto não era reconhecido, deste fica a certeza da sua alegria, sempre que voltava.
Nem todos os locais resistiram à acção arrasadora do tempo. O Barroco deixou de ser quintal, reintegrando-se no monte onde foi esculpido. As poças, reservatórios de água feitos de muros de pedra ou terra, logo à saída da mina ou por baixo da pedra onde a água nascia – e, no Barroco, uma das poças recolhia a água nestas condições milagrosas, escorrendo pela parede de um rochedo – ainda por lá se encontram, embora o seu número vá escasseando.


Se repararem bem, tenho um cigarro na mão esquerda, coisa parva que comecei cerca dos 14 anos, em … Celorico. Felizmente, outro tanto tempo passado e deixei de fumar. Resta a tolerância, face aos que ainda o fazem. Não me incomodam minimamente, embora me obriguem a sermão e missa cantada, relativa aos malefícios do tabaco. Coisas ….
Já o cabelo estava para a minha relação com os meus pais como o brinco ou o piercing estará para o meu filho e para mim, se ele se lembrar de tal coisa. Vou aguardando com esperança.
Também a costa marítima de Gaia está diferente, muito diferente. Felizmente, para melhor, requalificada, limpa e recuperada. Valadares, Miramar, Aguda, para além de Francelos, são locais onde dá gozo estar, hoje.


A Refontoura resiste e a sua capela, dizem-me, é património municipal. As Bessadas, onde aprendi a nadar, é hoje uma praia fluvial, motivo de orgulho para os celoricenses, paredes meias com a Biblioteca Municipal, enquadrada nos novos jardins do centro da vila – a tal do professor Marcelo Rebelo de Sousa. À data, era apenas um fio de água.


Ainda há bogalhos. Enquanto houver carvalhos, enquanto os montes e as serras forem o postal da terra, as pequenas e leves nozes, que ombreiam com as bolotas nos ramos das árvores, vão continuar a possibilitar às crianças as brincadeiras na levada. Um dos últimos lugares no desenvolvimento do país pode ser um custo elevado, mas ainda bem que Celorico cresce mais devagar que outros locais. Se por lá passarem, vão entender. Podem usar os sapatos.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Expectativas e obrigações

Só agora comecei a escrever. Se outra vantagem não houvesse, esta particular forma de comunicar lembra a carta e, sobretudo, o postal do século passado. É engraçado como esta frase se tornou adequada – o século passado está, já, tão distante … tanto quanto o 5 de Outubro de 1910, para os da minha geração. E só passaram meia dúzia de anos ….
Escrever com este cuidado, só agora aconteceu. O que significa que, antes, não era escrita, o que produzia. Era assim uma espécie de obrigação, como quem responde a perguntas, para não se excluir. Escrevia (se era isso) para cumprir com deveres. Sobretudo profissionais.
Aprecio Samarago e entendo a sua postura quanto à dependência da escrita face ao que se tem para dizer e a quem se destina essa mensagem. Tirando o exagero, concordo com a ideia de parar de escrever quando nada temos para dizer ou, tendo algo para transmitir, quando não temos destinatário. O exagero só é perceptível em situações marginais, de génio, como em Pessoa, que não precisa de público - ele próprio, ou as suas múltiplas personalidades, serão suficientes, e as Margaridas do nosso tempo, que descobriram o filão do vácuo, preenchido com a sonoridade das palavras encantadoras.
Isto vem a propósito da forma como respondemos ao voraz apetite dos blogs, e do nosso em particular. A regularidade é essencial. Não exactamente a cronológica, será mais a das expectativas. Mas não pode passar muito tempo sem uma nova publicação. O que nos leva à questão do que temos para dizer. Porque descobri as histórias da vida que me envolveu, no passado, encontrei uma temática que tem sido bem acolhida. O que me conduz aos destinatários. Porque são poucos, não os posso perder. Esta pressão é danada!
Já agora, o que me alimenta não é o que produzo, nem aqueles a quem atinjo, porque não os equaciono quando me lanço na aventura. Mas a resposta, singular ou partilhada, é decisiva.
Sou frequentador assíduo de meia dúzia de espaços deste tipo, onde deixo, muitas vezes, um pequeno comentário. Pode ser que os outros sejam como eu, pode acontecer que esse pequeno gesto seja o dínamo da continuidade. No entanto, concordo com aqueles que me dizem ser necessário ir um pouco mais além. E estou a matutar nisso.
Já agora, um destes dias vou-vos contar dois episódios do meu passado, um ligado ao Carvalho, o outro à minha felicíssima juventude. Mas não hoje. E, reparem, que o prometo como se fosse uma grande novidade! Manias!

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Amizades d'antanho

O Toninho era, quase sempre, fonte de divertimento, que jorrava em caudal volumoso. Nem sabia ser de outro modo, quando para aí estava virado. Conheci-o de forma chocante, já que fazia equilibrismo, numa instabilidade propositada, no corrimão do tabuleiro superior da ponte, gritando a sua morte voluntária, enquanto girava o corpo, numa volta estonteante a uma das colunas suporte de iluminação. Era de tal modo perigosa a façanha que todos os que o cercavam – e eram muitos – esticavam os braços para o agarrar, nunca o conseguindo devido à rapidez do seu movimento, mas nunca desistindo de o fazer, na vez seguinte, antecessora duma outra que abria caminho à próxima, para a repetir de imediato.
Eu olhava, boquiaberto. Reconhecendo alguns no numeroso grupo, aproximei-me de um deles, que apreciava a cena com um sorriso, sem mostrar grande preocupação. Subiram, em uníssono, os cantos da sua boca quando me disse que o figurão era famoso. Vais conhecê-lo e é garantido, vais gostar dele. Daqui a um pouco, ele deixa-se destas coisas e voltamos para o Café, vais ver.
Assim foi. Tão depressa rodopiava como saltou para a segurança do passeio e, sem mais, arrancou para o Mucaba, local de encontro e de convívio apreciável, que eu, só agora, começava a frequentar.
Não era magro, mostrava mesmo uma notória tendência para alargar, num futuro mais ou menos próximo. Mas o sorriso maroto, o olhar cantante e a predisposição para exagerar na agudeza e volume do tom, em quase todos os momentos de protagonismo, faziam do Toninho um dos mais populares naquela zona, produtora de, pelo menos, uma dezena de espécimes fora do normal. Lembro o Luciano, que era tramado para a pancadaria; uma vez saiu disparado para o exterior do, à data, famosíssimo café, catedral de francesinhas e girafas (caneca de cerveja de enormes proporções), para se meter numa briga, em que uma mão cheia de mânfios, como chamávamos aos da nossa idade que não conhecíamos, batia desalmadamente num outro, também, para nós, absolutamente desconhecido. A refrega durou pouco. O Luciano chegou, como era seu timbre e, pancada neste, chuto naquele e murro no outro, desfez a contenda, correndo com o grupo dos “corajosos”. Regressado e questionado pelas razões que o levaram a intervir, a resposta surgiu pronta: com ele por perto, nunca seria possível a um bando de cobardes bater num gajo só! Ele tinha essa missão – equilibrar estas situações! Mais a mais, andar à pancada fazia-lhe bem, acalmava-o ….
Mas agora, e aqui, quero recordar o Toninho. O da viagem à Póvoa, no comboio da linha da Trindade, que não era rápido, nem confortável ou seguro, de tal maneira que, ainda mal havíamos passado os primeiros túneis, já uma cabeça aparecia no lado de fora da janela, no extremo inferior do corpo que se prendia precariamente ao tejadilho da carruagem, pelos pés! Como se isso não bastasse, dava o Toninho fortíssimos murros na janela e gritava que a queria aberta, porque estava a ficar cansado e desejava entrar. Não nos fizemos rogados (com ele nunca se sabia, podia acontecer estar a falar verdade e cair a qualquer momento) e puxámo-lo para dentro, para os assentos, onde se refastelou e afirmou, convicto, que o tempo ia mudar, porque sentia a cara fria e isso era sinal de chuva!
Ou o Toninho das idas, também em comboio, para a praia, agora na linha do norte, nos tranvias, que paravam em todas as estações e apeadeiros. Liderados por ele, entrávamos num apeadeiro sem bilheteira, que ficava perto do local onde morávamos. Na carruagem que escolhíamos, composta por três espaços de bancos e dois patamares de entrada, intermédios, ocupávamos um destes, enchendo-o.
A segunda coisa a fazer, depois de tomar o cuidado de ocupar o patamar mais afastado da carruagem onde andava o revisor, era abrir o ar, acto praticado com religiosa devoção e obrigatoriedade. Consistia em puxar um botão que cortava o sistema hidráulico de fecho das portas, para apanharmos a frescura do vento com os nossos rostos corados.
De seguida, aguardávamos. Quando o revisor chegava, avançava em nossa direcção, fazendo o seu trabalho, de forma paulatina e profissional. O seu bilhete, por favor? Clique, clique, aqui o tem, muito obrigado. O seu bilhete, por favor, de novo o som da dupla trincadela do alicate e do agradecimento final. Não tem bilhete? Entrou em? Vai para? Muito bem, são cinco e quinhentos. Não tem troco? Isto está mau, há poucas moedas …
Quando estava junto do patamar que preenchíamos, e o comboio parava numa estação (ou apeadeiro, parava dezenas de vezes!), saíamos todos e entrávamos no patamar que já tinha sido “trabalhado” pelo revisor. Ficava vazio o que estava à sua frente e cheio o que ficava nas sua costas. Muitas vezes o víamos a olhar para trás, com o sobrolho franzido. Mas tinha uma tarefa a cumprir, que não abandonava. Passava a cumpri-la de forma mais célere, para acabar a carruagem e voltar ao patamar agora superlotado. Não tenho memória de isso, alguma vez, lhe adiantar grande coisa. Quando conseguia regressar, estávamos cá fora, na estação da praia, todos mais o Toninho, a rir às gargalhadas do olhar frustrado que o “pica”, como carinhosamente o tratávamos, assumia nessa altura.
Arreliar os mais velhos era o desporto favorito do Toninho. O vadio parava à porta do café, para sair um passageiro. Quando se preparava para seguir, o nosso herói saía em grande velocidade e tirava os tróleis dos fios eléctricos. Lá vinha o condutor repor os alimentadores de energia, para poder continuar a viagem. E vinha outra vez. E outra. Só lá para a quarta ou quinta, o Toninho desistia, com pena do homem, alegava. Eu sempre achei que era o resultado directo da ameaça feita pelo sujeito, de chamar a polícia se ele continuasse!
A sua travessura mais deliciosa, para nós, consistia na chamada do táxi que passava a essas horas tardias. Era certinho: parava e ligava o taxímetro. Leve-me a casa, por favor, dizia o Toninho ao entrar pela porta traseira, junto ao passeio. Sim senhor, sem problemas! E a sua casa é onde? É aqui mesmo, e saía pela outra porta, atravessando a avenida e caminhando em direcção a casa, acompanhado pelos insultos do taxista, que não via piada nenhuma naquilo!
Se calhar foi por isso, por gostar tanto de se meter com os mais velhos, que não chegou a essa condição. Ou por ter mudado tanto, pois passou a temer as mais seguras e pacatas aventuras. Ou, e isto é o mais certo, por ter sido atingido por mal danado, que o levou pouco depois. Ficaram estas memórias e a imagem, que evoco regularmente, do padrinho do meu filho.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Inteligência e Doidices

No que a seguir se conta, ocorria um erro de facto na primeira publicação, que convém emendar. Situava-se no segundo parágrafo, onde se apresentava, e apresenta, a razão que leva a personagem central a endoidecer. Por esse motivo, o que hoje e aqui se relata é diferente do que já se fez - mas a alteração é feita em nome do rigor histórico, logo deduzo que serei desculpado.
Era conhecido pelo Barbado, desde que deixara de se preocupar com o aspecto. Endoidou, diziam todos na terra, e não se enganavam muito. Não conseguiu aguentar a divulgação daquilo que só ele sabia – para além dos autores, claro.
Até o filho havia assumido como seu, bem sabendo que era o produto da infidelidade de quem mais julgara amar. Havia partido para a terra da árvore das patacas de todos os portugueses da época, procurando a sua fortuna. Mas teve que voltar, ainda antes de atingir os seus objectivos. Recebera a notícia que o ferira profundamente, de forma seca e directa: a sua mulher estava grávida de outro. Engoliu a dor, o orgulho e a vontade de reagir. Viveu o dia-a-dia sem pensar muito. Tocou a vida como se fazia com o gado, na terra - para a frente.
O golpe fatal, que o fez desistir, aconteceu anos depois. O filho protegido tinha entrado para o seminário, num golpe de sorte. O futuro estava garantido para todos os que trilhassem essa vida de rigor e fé. No entanto, passado algum tempo, foi expulso, porque os responsáveis pela instituição souberam da sua origem pecaminosa - com a agravante do verdadeiro pai ser padre.
Por muito que matutasse, não conseguiu evitar o sofrimento. Todos saberiam e nada podia fazer para evitar os olhares de comiseração, que o iriam trespassar. Encontrou a sua saída, entrando em si. Nada mais encontrava nos outros que valesse o esforço. Continuou a lidar com os do seu sangue, mas sem dar explicações, sem aceitar piedade, sem partilhar sentimentos.
Caminhava muito. Ia, com facilidade, de Carvalho, em Celorico, até Amarante, Penafiel ou mesmo Gaia, onde morava uma sua sobrinha e afilhada. Uma vintena de léguas corridas em 2 ou 3 dias, sempre com pressa.
Morreu de forma dramática, num sofrimento atroz, que muitos consideraram o fim que perseguia, desde que cortou laços e nós. Perseguido por miúdos, que todos sabemos tão capazes da extrema doçura quanto da crueldade mais requintada, na festança que os caracteriza quando descobrem a diferença frágil no outro, caiu por uma ladeira e, na levada que corria lá no fundo, partiu uma perna. Não aconteceu muito longe, um pouco para lá do Barroco, que o sobrinho começara a granjear. Nem parecia que fosse dar no que deu. Só que o Barbado não era capaz de manter o gesso, arrancava-o mal era colocado, gritando que precisava de liberdade para abalar. Tantas vezes o arrancou, tantas vezes se feriu, tantas vezes tentou sair do leito que o corpo cedeu.
Lembro um pequeno episódio que me foi contado por quem o tratava por padrinho. Chegado ao Porto, era seu costume dirigir-se ao local onde ela trabalhava e gritar ou cantar por ela, fazendo-a passar “por vergonhas”, como me dizia com um sorriso de boa memória. Assim, para evitar males maiores, arrastava-o para sua casa, no centro de Gaia, onde tratava dele, dando-lhe de comer, lavando-lhe a roupa o deixando-o ficar dois ou três dias a dormir na cave, fria e húmida, mas suficiente para o afastamento que o tio Barbado procurava, constantemente.
Numa dessas visitas, a afilhada vestiu-lhe uma camisa do marido, enquanto se propunha levar a sua ao rio, para as lavadeiras tratarem dela, junto com outra roupa que precisava ser lavada. Antes de sair de casa, depois da anuência do tio, verificou que os botões eram de madrepérola, de uma riqueza que só reconhecia, nesses tempos de enormes dificuldades, pelo inesperado da descoberta. Rápida como só ela sabia ser, substituiu-os por outros, parecidos apenas na cor, que guardava na caixa da costura. De certeza que os novos ficariam bem na camisa domingueira do homem e o tio, doido e sem ligar ao que o rodeava, nem deveria notar a diferença.
Satisfeita consigo mesma, foi ao rio – na realidade um tanque, que aproximava o Douro das casas – onde entregou a roupa às senhoras que prestavam esse serviço a quem, como ela, trabalhava fora. Mal a tarefa ficou concluída, pegou na roupa e dirigiu-se a casa, onde a colocou a secar.
Dois dias depois, o tio Barbado informou que se ia embora e pediu à afilhada a sua camisa. Depois de ela lha entregar e quando se preparava para a vestir, olhou espantado para os botões. Entre alguns palavrões, que caracterizavam a sua forma de reagir aos contratempos, surgiu célere a acusação de roubo! Os seus botões não eram aqueles, eram outros. Onde estavam, onde estavam, repetia aos gritos.
Envergonhada, a sobrinha tentou, em desespero, uma última cartada. Foram as lavadeiras, enquanto esperava pela roupa, deve-se ter distraído e elas trocaram os botões. Foi, de certeza, o que aconteceu, padrinho.
Cada vez mais indignado e usando todo o tipo de linguagem que se lembrava, ele perguntou-lhe se ela achava que o podia enganar assim, tão facilmente! A ele! Que sabia tão bem como ela que a agulha e a linha não correm em tecido molhado!
Foi o suficiente. 5 minutos depois, com os botões de madrepérola no seu devido lugar, o Barbado partia. O seu nome era João Carvalho e foi meu tio-avô. A sobrinha e afilhada era a minha mãe e servia-se desta história para me mostrar a justeza da expressão que mais gostava de usar, quando queria demonstrar que a honestidade deve nortear, sempre, as nossas acções: “apanha-se mais depressa um mentiroso que um coxo”.

Saberes e Talentos

Sempre existiu uma relação íntima entre os Carvalho e os cavalos. Como criadores, adestradores ou simples utilizadores, os membros da família habituaram-se a partilhar a vida com estes nobres, fiéis e inteligentes animais.
O meu avô Francisco, por exemplo, era criador, o que pressupunha ser conhecedor e comerciante. Tinha um saber quase inato, que lhe permitia escolher sempre os melhores e, depois de os reproduzir e ensinar, ganhar ainda um bom pecúlio com a sua venda.
Sei que, num dado ano (e estaremos a falar do início do século XX), todos os cavalos que tinha, e que andavam, regularmente, libertos no pasto, foram roubados. Sendo sinónimo de riqueza, à época, eram também essenciais para as deslocações, num tempo em que o automóvel dava as primeiras curvas e o comboio ainda não era resposta para esse tipo de necessidades. Com a ajuda de dois amigos chegados, o avô Francisco partiu, em busca do seu tesouro. Passaram serras, montes, vales e planícies, subiram e desceram, deram voltas e seguiram em frente, dia após dia.
Quando já desesperavam, encontraram os ladrões. Estavam às portas de Leiria, pelo que palmilharam, seguramente, uns 400 Km. As coisas estiveram feias, até porque o sino da igreja foi tocado a rebate, atraindo toda a freguesia. Mas a determinação, a sagacidade e a rapidez com que o trio agiu retirou qualquer hipótese de resistência à recuperação de todos os animais, feito que foi concretizado com êxito pleno.
Dos filhos que teve, dois herdaram o talento para a criação de cavalos. O mais velho, mais sensato e sério, tratou de organizar a sua vida em torno dessa sua competência. Já vos falei dele, o meu tio Ezequiel, com que cresci e de quem guardo imensas saudades. O mais novo, conheci mal, mas era mais brincalhão, mais irreverente. Muito jovem, partiu para o Brasil, onde viveu e morreu. Só estive com ele uma vez (que me lembre) e adorei a sua forma de ser. Tinha uma característica mais: era um conhecedor extraordinário de cavalos. As pilecas ou os campeões não tinham segredos para o meu tio João.
Lembro uma história que me contaram, há tanto tempo que já esqueci o autor: o João Carvalho gostava e sabia tanto de cavalos que resolveu comprar um, excepcional nas suas qualidade, embora padecesse de um pequeno problema. Nesse tempo, numa terra vizinha (creio que era Fervença) havia um sujeito que se achava muito conhecedor de cavalos, bem mais do que qualquer outra pessoa, fosse de onde fosse. E então na semana da supra referida compra feita pelo meu tio é que ele andava da língua, em gabarolice. Cansado de tanta prosápia, o meu tio resolveu tentar uma pequena brincadeira no sábado seguinte, na feira do lugar. Se bem o pensou, melhor o fez. Montou o cavalo recém-adquirido e foi à feira, onde exibiu o animal. Aproximou-se o outro especialista e analisou a montada. Sempre que se chegava perto do cavalo, este levantava a cabeça, resfolegava e recuava (com a ajuda de um alfinete, com que o meu tio o picava, nas aproximações do interessado). Que era uma estampa, sim senhor; muito bonito e elegante; que tinha bons dentes e pêlo asseado; mas muito nervoso …
Conversa para aqui, conversa para ali, e a transacção consumou-se (com o meu tio a ganhar mais uns cobres, face à compra). Ah, e também com uma particularidade: até receber o cavalo nas suas mãos, ou seja, até se concretizar a compra, não reparou no defeito do bicho. Vocês já viram qual é? Pois, nem ele! Até o cavalo, que era cego, não viu!

A virtude do Gonçalves

Dois intróitos:
Já sei porque não tenho Carvalho no meu nome. A minha irmã mais velha (até por ser aquela que mais próxima esteve dos nossos ancestrais avós) disse-me que os meus pais, aquando do seu nascimento, decidiram homenagear a minha avó materna, ainda viva, Maria Gonçalves de Moura, já que o meu avô, Francisco Gonçalves de Carvalho, tinha falecido uns anos antes. O Gonçalves, como nome comum a ambos, seria a melhor forma de prestar o tributo merecido. Tendo sido essa a solução para a mais velha, bem andariam se mantivessem a decisão no que respeita aos que se seguissem - e foram 5! Assim fizeram.
Outra coisa é o tempo, como condicionante da acção e do pensamento. Em meados de 1800, altura em que aconteceu o que vou relatar, havia um entendimento de honra e virtude que não sobreviveu à voraz passagem dos anos. Ainda bem, neste caso e na minha opinião.
Perto de 1850 emigrou para o Brasil um celoricense, que carregava uma recordação pesada: teria 4 a 5 anos quando os pais, precisando de ir tratar das terras que amanhavam, o deixaram a tomar conta da irmã mais nova, a Teresinha, à data com pouco mais de 1 ano. Num momento de maior distracção, a pequena, que começava a dar os primeiros passos, saiu do local onde brincava e, de forma titubeante mas decidida, deslocou-se rapidamente para junto da lareira, tropeçando e caindo logo naquela fogueira tremenda, que não foi acesa para tal desgraça, antes para aquecer a cozinha num dia particularmente frio. Desse terrível momento resultou uma sequela medonha - a Teresinha queimou um braço de tal forma que só a amputação lhe salvou a vida, atirando-a para os braços de uma das mais terríveis heranças da época, a deficiência.
A culpa nunca largou o mais velho. Antes dos vinte anos, sendo-lhe difícil conviver, todos os dias, com a marca da sua negligência, e procurando criar condições para dotar a irmã de um futuro menos sombrio, partiu para a ex-colónia em busca de fortuna. As coisas correram bem e criou um negócio (creio que de comércio), junto com um outro emigrante, seu conterrâneo, que tinha objectivos similares. Este chamava-se Manuel Gonçalves.
Era costume (mantido por largas dezenas de anos), que o homem emigrado, quando pensava seriamente em casar, voltasse ao país de origem para encontrar a mulher para a vida e com ela se unir. O Gonçalves tomou essa decisão e comunicou-a ao sócio. Disse saber existir uma mulher muito prendada, na terra de ambos (Carvalho continua a ser a referência), que pretendia conhecer e, se tudo corresse como esperava, com ela casar. O sócio desejou-lhe felicidades e, como rodapé da conversa, aproveitou para lhe dizer que, se não fosse aquela quem ele procurava, deveria dirigir-se à casa dos seus pais para conhecer a sua irmã mais nova, cujo único defeito residia no facto de ser maneta, mas que isso não impedia que, para além de bonita, fosse uma mulher com todos os predicados que um homem de bem procura, quando pretende ligar-se para sempre (era, e é ainda, o sonho comum).
Manuel Gonçalves regressou à pátria e, para não perder tempo, já que pretendia voltar ao Brasil rapidamente, visitou de imediato a mulher que tinha referenciado. No primeiro encontro, depois das apresentações, e quando procuravam ler na intimidade de cada um, de forma a melhor se conhecerem, a dita moçoila, bonita como poucas, inteligente e honesta, enquanto falava, pegou numa maçã e cortou-lhe uma fatia, que reservou para si, empurrando o resto do fruto na direcção do pretendente. O gesto não era inocente. Significava, na linguagem dos costumes, que já não era virgem e, tendo vergonha de falar no assunto, utilizava aquela expressão simbólica para lho comunicar.
O meu avô não hesitou. Aquilo era decisivo, para si e para qualquer outro homem da época. Agradeceu a recepção e despediu-se, dirigindo-se para casa dos pais do sócio, onde conheceu a minha avó, Teresa de Jesus, conhecida na terra como a Maneta. Não voltou ao Brasil - o sócio, agora cunhado, tomou conta do negócio e financiou o início de vida do casal.
Concordo que a razão para a existência dos seus descendentes não será, aos olhos dos valores e princípios que ora vigoram, a mais agradável. Mas, se considerarmos aqueles que ordenavam a sociedade do século XIX e o que cada um de nós (os ditos descendentes) foi construindo, constrói e continuará a construir, de certeza, neste terceiro milénio, ainda bem que a virtude não é um conceito cristalizado.
Pelo que permitiu, na óptica do tempo, e pelo que hoje possibilita.
Assim sendo, ainda bem que somos, geneticamente (ou atavicamente?) virtuosos.

Antes que perguntem ... Carvalho?

Carvalho??
É. Nada tem a ver com o Quercus (ou até terá - já viram quanta nobreza contém, aquele porte? Soberbo!). Tem tudo com ramo. O ramo da família (minha), que carregou esse apelido. O meu avô paterno, Francisco Gonçalves de Carvalho, que o transferiu para a minha mãe. Com a tradição, eu e os meus irmãos apanhamos o Silva do meu pai. Até aqui, tudo bem. Mas ambos resolveram usar o nome do meio da minha mãe para a transferência destinada à prole. Com esta decisão (cuja razão desconheço), ficamos Gonçalves e perdemos o Carvalho.
Só agora me apercebo da falta que me faz o Carvalho. Quando recordo as pessoas que o foram (já quase todas falecidas, só resistem os poucos filhos e netos dos varões, no tal ramo dos Carvalho), mesmo sabendo que a coragem, a nobreza, a sensatez e a rectidão não são atributos hereditários ou sequer são produto de um qualquer nome, fico com a sensação de que, faltando o apelido, é mais difícil conseguir ser, daqueles, portador.
Um marcou-me mais que os outros - o meu Tio Ezequiel. Para perceberem melhor, vou contar-vos uma pequena história:
Tinha cerca de 15 anos quando, por razões que não interessam, mas que foram parvas, de certeza, me envolvi à pancada com um sujeito, na aldeia onde passava férias. Ele tinha ido à inspecção, recentemente, e era tratado, na região, por Peito D'Aço, alcunha que a família envergava há já várias gerações. Não lhe serviu de muito, recebeu mais do que distribuiu. Da refrega resultou uma ameaça terrível, por parte do Peito D'Aço: um dia destes, à noite, quando eu fosse à loja da aldeia (o que fazia todos os dias, ou melhor, todas as noites, religiosamente, porque era o único sítio com televisão), iria estar à minha espera num qualquer sítio e dar-me-ia uma sacholada (com uma enxada ou sachola, instrumento para cavar a terra)!
Não sei como, o meu Tio soube e, no dia seguinte, com os seus modos severos, disse-me que estava proibído de sair à noite, já que, não sendo meu pai, não saberia o que dizer à minha mãe (sua irmã) se algo me acontecesse. Reagi mal, com o ímpeto da idade que tinha - a da parvoíce. Que isso iria mostrar a todos que eu era um medricas, que isso me obrigava a ficar em casa sem ter nada para fazer, que isso só o meu pai poderia decidir, tudo usei. Nada feito, a decisão mantinha-se e eu, pelo respeito que lhe guardava, impeditivo de lhe desobedecer, começava a ficar desesperado.
Então, lembrei-me de utilizar uma última arma: apelar à coerência de quem era, não só aos meus olhos mas aos de todos, naquela terra, um homem de carácter. E lembrei-o de uma situação que ele havia vivido, muitos e muitos anos antes, conhecida de todos na aldeia.
Um dia, numa feira próxima (a Lameira de Agosto, a maior da região, no que respeita a gado), quando negociava uma junta de bois, um conhecido meteu-se no negócio e ofereceu mais do que ele. Acto terrível, na época. Quando alguém negociava, todos os outros esperavam o resultado. Só poderiam intervir se o negócio não se concretizasse. Por causa dessa norma consuetudinária (nascida do costume, do que se fazia, tendo a convicção que era obrigatório cumprí-la), o meu Tio e esse conhecido - que diabo, também tinha uma alcunha, era o Zé-do-Telhado da terra - andaram à pancada e, não sei se por causa dos genes, se do físico, também ele deu mais do que recebeu. E também ele sofreu uma ameça pública do Zé-do-Telhado, que lhe daria um tiro, se o visse a passar à sua porta! Pois bem, se mais depressa o disse, mais depressa o meu Tio reagiu. A partir do dia seguinte, todas as noites, durante 3 ou 4 semanas, saía de casa e andava, durante uma hora, para um lado e para o outro, na estrada em frente à casa do Zé-do-Telhado.
Quando acabei de recordar o episódio, ele ficou silencioso, a olhar para mim. Demorou alguns minutos a reagir. Depois disse-me:
- "Está bem, podes ir à loja. Tens razão. Mas antes, duas coisas - vou telefonar à tua mãe, contar-lhe o que aconteceu e vou dizer-lhe que te deixo sair. E vê lá se entendes o mais importante - eu não levei nenhum tiro, nem estava disposto a levar, se ele saísse de casa. Pensa bem nisso antes de saíres, logo à noite."
Não há coragem sem precaução - foi a lição que entendi. Não levei uma sacholada e iria ser muito difícil ao Peito D'Aço acertar-me, pois o caminho que usei para ir à loja, nos dias seguintes, era ligeiramente diferente do habitual e sempre muito bem iluminado!!
Tenho saudades dele. Às vezes, tenho demasiadas saudades.
Ah, em tempo: também não criei, para os meus filhos, o Carvalho. Se calhar porque, se lhes desse o apelido, ele não fosse tão decisivo. Afinal, eu não tenho Carvalho no meu nome.