quinta-feira, 21 de junho de 2007

O primeiro encontro com o Serafim

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Por seu lado, o Serafim, Professor de Filosofia sem canto para ficar, era uma pessoa de peculiares talentos. Muito bom no relacionamento, na evocação de memórias longínquas, no trato e na figura, sempre cuidada, era um autêntico desastre em tudo o que implicasse o uso das mãos. 45 anos, divorciado, com profissão que rendia um salário generoso, no meio duma dezena de estudantes universitários, tinha o bom senso de aceitar jogar às copas no dia de receber, fórmula perfeita para distribuir uma pequena parte do vencimento aos famintos companheiros de residência.
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Um dia, quando me dirigia para a República (a dos Pyn-Guyns, situada na alta), juntamente com o João Novo, colega da área da Engenharia Civil, vimo-lo no seu carro, um Morris azul, parado nos semáforos, em primeiro lugar da fila, aguardando que o verde caísse, para arrancar. Como levávamos malas pesadonas, sugeri ao João que o alertássemos para a nossa presença, visando uma boleia muito tentadora, até casa. É que as colinas de Coimbra não são fáceis, para carregamentos.
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Nem penses, disse o João, de imediato. Já lá ao fundo reparei nele e acho que as coisas vão aquecer. Se bem conheço o Serafim, isto vai ser giro. O melhor é pousarmos as coisas e ficarmos por aqui, a assistir. Vais ver que não perdemos nada, até nos vamos divertir bastante.
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Assim fizemos. Alguns segundos depois, o verde apareceu. O Serafim ficou no mesmo local, parado. Mais alguns segundos, e estava instalado um verdadeiro pandemónio: todos os condutores que estavam na fila, presos pelo Morris, começaram a manifestar o seu desagrado, fazendo soar as buzinas, com maior ou menor harmonia. Mas o barulho, esse era muito e em crescendo.
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O sinal voltou a ficar vermelho. Com resmungos sentidos, o silêncio foi reaparecendo. Mais alguns segundos e volta o sinal para avançar. Mais uma vez, o Serafim fica parado, no mesmíssimo sítio. Novo buzinão (como isto aconteceu no início dos anos 80XX, julgo ter testemunhado, in loco, o primeiro buzinão do país).
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De repente, o Serafim salta para fora do carro e, virando-se para todos os que estavam atrás, começou um discurso argumentativo-filosófico, mais ou menos nestes termos: Mas que é que querem! Não anda! Está avariado! Não mexe! Apitem, que vos há-de adiantar muito! Não anda, mais nada! A-v-a-r-i-a-d-o!
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O sujeito do carro imediatamente atrás saiu e aproximou-se do Serafim: Então que se passa? Problemas, é? Claro, responde ele, está avariado e esses aí buzinam como se isso resolvesse alguma coisa.
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Ainda o Serafim explicava o que se passava, dizendo que o motor foi abaixo e não pegava, já o sujeito entrava no Morris e dava à chave. O carro começou, imediatamente, a trabalhar e ele arrancou, passando o cruzamento. O Serafim, que se esforçava por traduzir gestualmente todas as explicações que tinha, ficou com um ar espantado, mas não por muito tempo. Logo, logo, era vê-lo a correr atrás da sua pequena viatura, gritando ao intruso: Alto, alto aí, esse carro é meu! Pare, pare, ouviu? Alto! Polícia!
Claro que esta cena durou apenas alguns segundos. O sujeito, que apenas queria tirar o carro “avariado” do caminho do seu, após o cruzamento estacionou, de forma a libertar a passagem.
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Ao passar pelo Serafim, no regresso ao seu automóvel, deu-lhe uma palmada nas costas e disse-lhe, com um sorriso largo: “Prontinhos, está arranjada a viatura!”
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Nesse dia aprendi a estar sempre atento ao Serafim, de forma dissimulada e o mais próxima possível. É que a risota, que o João levava às lágrimas, tornava-se uma possibilidade muito séria.
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1 comentário:

Eu disse...

Já tinha ouvido a história contada por ti, e mesmo assim voltei a rir...