sexta-feira, 27 de abril de 2007

Machos

Era muito novo quando ouvi falar, pela primeira vez, dos resultados da acção do homem na natureza. Todos gabavam o milho híbrido, afirmando que a produção mais que duplicava, se usado em vez do milho comum.

Os lavradores, com a vida dependente de inúmeros factores, produziam milho para consumo e venda, mas não deixavam de guardar parte da colheita como garantia da produção futura, destinada à sementeira da primavera seguinte. Com esta solução, até essa garantia deixava de ser necessária.

O meu tio Ezequiel torcia o nariz a estas modernices. Sendo uma pessoa de convicções fortes, não mudou para os novos produtos de sulfatagem da vinha, mantendo-se fiel ao sulfato de cobre, até ao fim. Também o milho híbrido sofreu com esta forma de ser. Só depois dos outros o usarem durante anos, ele aceitou experimentar a receita. No entanto, lembro-me que, nos primeiros tempos da experiência, apenas o usava no milheiral destinado à alimentação do gado, não o querendo para consumo próprio ou para venda.


Uma das áreas de ensaio humano a que aderiu, desde sempre, centrava-se na produção dos machos, cruzamento de cavalos com burras. Tinha a convicção que, para trabalhos duros, eram os melhores. Por isso, sempre que o negócio lhe interessava, comprava machos e preparava-os para o trabalho. Fazia-o de forma diferente do que víamos nos filmes, pois o único método similar consistia no volteio, ou seja, fazer o cavalo (ou o macho, como é o caso em apreço) andar em círculos, no extremo da corda que o prendia, com a outra ponta segura na mão do dono.
Tudo o resto era bem mais suave. Numa primeira fase, em passeio com corda curta ou ainda no volteio, era uma criança que montava o animal, em pêlo e segurando-se nas crinas (eu fiz este trabalho várias vezes, tendo sempre mais prazer que medo). Depois, já com sela e rédeas, repetiam-se os passeios e os círculos, ainda com alguém muito jovem. Só depois de semanas de treino o meu tio o montava, em estrada de terra, plana, não fosse o diabo tecê-las. Normalmente, pouco animação havia. O cavalo aceitava, com alguma naturalidade, a nova condição e o meu tio começava a pensar onde o iria negociar, por um valor consideravelmente mais elevado.


Mas não era só nesta função que o meu tio os trabalhava. Também nos vícios que traziam actuava, procurando acabar com eles, já que desvalorizavam o seu preço. Porque tinham esses vícios, comprava-os bem mais baratos do que os vendia, quando conseguia que desaparecessem. Não tenho memória de falhanços, nesta matéria.


Um dos machos que passou por lá tinha uma dessas particularidades, condicionadoras do seu valor – escoiceava tudo e todos que se atreviam a passar pela sua traseira. No dia da sua chegada, fomos todos alertados disso e proibidos de nos aproximarmos dos pés do bicho – para o meu tio, não havia patas, antes mãos e pés, e era assim que se lhes referia.
Não demorou o “tratamento”; o meu tio, como quem não queria a coisa, assobiando, passava por trás do macho, lentamente. Se este ficasse imóvel ou recolhesse os pés, para perto das mãos, ele continuava a andar, sem parar. Pelo contrário, quando afastava, para fora, os pés, o meu tio reagia de imediato e com brutalidade, pontapeando-lhe os casco com os seus socos, duros e pesados. Explicava-me, nessa altura, que o coice era assim preparado, para que a força usada atingisse valores máximos, com a rápida mola que daí resultava – os cascos recolhiam à barriga e saíam, disparados, em direcção ao incauto que se atrevia a transitar por ali. Se, pelo contrário, os recolhesse para escoicear, pouca força sairia, no movimento simples de dentro para fora. Logo, quando os recolhia, mostrava mais medo de quem passava do que vontade em agredir. Também me justificava o seu método, bem mais violento do que gostaria: "se levares uma patada, percebes que esta é uma linguagem que o cavalo entende bem, pois recebe aquilo que se preparava para dar – muita dor".


Gostava muito dos cavalos do meu tio, fossem machos ou não. Também este maníaco do coice sentiu essa minha forma de ser. Nos momentos mais complicados, em que o castigo era aplicado, aproximava-me do seu focinho, com milho numa mão, que abria só quando estava perto da sua boca. Sendo um petisco muito apreciado, os seus dentes apanhavam todos os grãos, que comia com prazer sofrido. Acenava sempre um agradecimento, com os olhos muito brilhantes, não sei se da dor ou do prazer.


Ao fim de uns meses, foi vendido a um moleiro, que o queria para o transporte da farinha. Só o voltei a ver uns dois anos depois, na vila. O moleiro passou por mim, sem parar e, dos três ou quatro animais que o seguiam (sem corda, o que demonstrava o bom treino recebido), um desviou-se do caminho e dirigiu-se-me, acenando com a cabeça e encostando-a ao meu peito. Intrigado, porque o não reconheci de imediato, acariciei-lhe o focinho. Só quando vi as sacas brancas, associei os dados. E ainda tive que explicar ao moleiro a razão daquele comportamento do seu melhor macho, como me informou. Conhecedor profundo destes animais, o moleiro tirou alguns grãos de milho de uma das sacas e deu-mos, para eu poder repetir o acto que nos uniu.



Vê-lo a ir embora foi um dos momentos mais marcantes desse tempo. Também me marcou saber que os machos não são capazes de se reproduzir, pois todos são estéreis. Sinto, mais que sei, que esta é uma resposta da natureza à intromissão do homem no seu curso normal. Face às notícias do avanço científico na genética, espero que outras respostas naturais surjam, rapidamente. Para nosso bem.

1 comentário:

Unknown disse...

Mais uma das fantásticas histórias que me emocionam, pois me trazem a memória meu herói:pai, e sua paixão:os cavalos. Não sabia que meu primo Zeca teve a experiência com estes lindos animais, fortes, especiais. Mais um aprendizado, mais uma reflexão, está na hora de tornar estas histórias um livro, que tal??!!! A memória dos bravos homens da nossa família, triunfaria! Amo estas histórias, não me canso de relê-las. Saudades da prima do outro lado do Atlântico(sempre em lágrimas depois da leitura!!!)