O Toninho era, quase sempre, fonte de divertimento, que jorrava em caudal volumoso. Nem sabia ser de outro modo, quando para aí estava virado. Conheci-o de forma chocante, já que fazia equilibrismo, numa instabilidade propositada, no corrimão do tabuleiro superior da ponte, gritando a sua morte voluntária, enquanto girava o corpo, numa volta estonteante a uma das colunas suporte de iluminação. Era de tal modo perigosa a façanha que todos os que o cercavam – e eram muitos – esticavam os braços para o agarrar, nunca o conseguindo devido à rapidez do seu movimento, mas nunca desistindo de o fazer, na vez seguinte, antecessora duma outra que abria caminho à próxima, para a repetir de imediato.
Eu olhava, boquiaberto. Reconhecendo alguns no numeroso grupo, aproximei-me de um deles, que apreciava a cena com um sorriso, sem mostrar grande preocupação. Subiram, em uníssono, os cantos da sua boca quando me disse que o figurão era famoso. Vais conhecê-lo e é garantido, vais gostar dele. Daqui a um pouco, ele deixa-se destas coisas e voltamos para o Café, vais ver.
Assim foi. Tão depressa rodopiava como saltou para a segurança do passeio e, sem mais, arrancou para o Mucaba, local de encontro e de convívio apreciável, que eu, só agora, começava a frequentar.
Não era magro, mostrava mesmo uma notória tendência para alargar, num futuro mais ou menos próximo. Mas o sorriso maroto, o olhar cantante e a predisposição para exagerar na agudeza e volume do tom, em quase todos os momentos de protagonismo, faziam do Toninho um dos mais populares naquela zona, produtora de, pelo menos, uma dezena de espécimes fora do normal. Lembro o Luciano, que era tramado para a pancadaria; uma vez saiu disparado para o exterior do, à data, famosíssimo café, catedral de francesinhas e girafas (caneca de cerveja de enormes proporções), para se meter numa briga, em que uma mão cheia de mânfios, como chamávamos aos da nossa idade que não conhecíamos, batia desalmadamente num outro, também, para nós, absolutamente desconhecido. A refrega durou pouco. O Luciano chegou, como era seu timbre e, pancada neste, chuto naquele e murro no outro, desfez a contenda, correndo com o grupo dos “corajosos”. Regressado e questionado pelas razões que o levaram a intervir, a resposta surgiu pronta: com ele por perto, nunca seria possível a um bando de cobardes bater num gajo só! Ele tinha essa missão – equilibrar estas situações! Mais a mais, andar à pancada fazia-lhe bem, acalmava-o ….
Mas agora, e aqui, quero recordar o Toninho. O da viagem à Póvoa, no comboio da linha da Trindade, que não era rápido, nem confortável ou seguro, de tal maneira que, ainda mal havíamos passado os primeiros túneis, já uma cabeça aparecia no lado de fora da janela, no extremo inferior do corpo que se prendia precariamente ao tejadilho da carruagem, pelos pés! Como se isso não bastasse, dava o Toninho fortíssimos murros na janela e gritava que a queria aberta, porque estava a ficar cansado e desejava entrar. Não nos fizemos rogados (com ele nunca se sabia, podia acontecer estar a falar verdade e cair a qualquer momento) e puxámo-lo para dentro, para os assentos, onde se refastelou e afirmou, convicto, que o tempo ia mudar, porque sentia a cara fria e isso era sinal de chuva!
Ou o Toninho das idas, também em comboio, para a praia, agora na linha do norte, nos tranvias, que paravam em todas as estações e apeadeiros. Liderados por ele, entrávamos num apeadeiro sem bilheteira, que ficava perto do local onde morávamos. Na carruagem que escolhíamos, composta por três espaços de bancos e dois patamares de entrada, intermédios, ocupávamos um destes, enchendo-o.
A segunda coisa a fazer, depois de tomar o cuidado de ocupar o patamar mais afastado da carruagem onde andava o revisor, era abrir o ar, acto praticado com religiosa devoção e obrigatoriedade. Consistia em puxar um botão que cortava o sistema hidráulico de fecho das portas, para apanharmos a frescura do vento com os nossos rostos corados.
De seguida, aguardávamos. Quando o revisor chegava, avançava em nossa direcção, fazendo o seu trabalho, de forma paulatina e profissional. O seu bilhete, por favor? Clique, clique, aqui o tem, muito obrigado. O seu bilhete, por favor, de novo o som da dupla trincadela do alicate e do agradecimento final. Não tem bilhete? Entrou em? Vai para? Muito bem, são cinco e quinhentos. Não tem troco? Isto está mau, há poucas moedas …
Quando estava junto do patamar que preenchíamos, e o comboio parava numa estação (ou apeadeiro, parava dezenas de vezes!), saíamos todos e entrávamos no patamar que já tinha sido “trabalhado” pelo revisor. Ficava vazio o que estava à sua frente e cheio o que ficava nas sua costas. Muitas vezes o víamos a olhar para trás, com o sobrolho franzido. Mas tinha uma tarefa a cumprir, que não abandonava. Passava a cumpri-la de forma mais célere, para acabar a carruagem e voltar ao patamar agora superlotado. Não tenho memória de isso, alguma vez, lhe adiantar grande coisa. Quando conseguia regressar, estávamos cá fora, na estação da praia, todos mais o Toninho, a rir às gargalhadas do olhar frustrado que o “pica”, como carinhosamente o tratávamos, assumia nessa altura.
Arreliar os mais velhos era o desporto favorito do Toninho. O vadio parava à porta do café, para sair um passageiro. Quando se preparava para seguir, o nosso herói saía em grande velocidade e tirava os tróleis dos fios eléctricos. Lá vinha o condutor repor os alimentadores de energia, para poder continuar a viagem. E vinha outra vez. E outra. Só lá para a quarta ou quinta, o Toninho desistia, com pena do homem, alegava. Eu sempre achei que era o resultado directo da ameaça feita pelo sujeito, de chamar a polícia se ele continuasse!
A sua travessura mais deliciosa, para nós, consistia na chamada do táxi que passava a essas horas tardias. Era certinho: parava e ligava o taxímetro. Leve-me a casa, por favor, dizia o Toninho ao entrar pela porta traseira, junto ao passeio. Sim senhor, sem problemas! E a sua casa é onde? É aqui mesmo, e saía pela outra porta, atravessando a avenida e caminhando em direcção a casa, acompanhado pelos insultos do taxista, que não via piada nenhuma naquilo!
Eu olhava, boquiaberto. Reconhecendo alguns no numeroso grupo, aproximei-me de um deles, que apreciava a cena com um sorriso, sem mostrar grande preocupação. Subiram, em uníssono, os cantos da sua boca quando me disse que o figurão era famoso. Vais conhecê-lo e é garantido, vais gostar dele. Daqui a um pouco, ele deixa-se destas coisas e voltamos para o Café, vais ver.
Assim foi. Tão depressa rodopiava como saltou para a segurança do passeio e, sem mais, arrancou para o Mucaba, local de encontro e de convívio apreciável, que eu, só agora, começava a frequentar.
Não era magro, mostrava mesmo uma notória tendência para alargar, num futuro mais ou menos próximo. Mas o sorriso maroto, o olhar cantante e a predisposição para exagerar na agudeza e volume do tom, em quase todos os momentos de protagonismo, faziam do Toninho um dos mais populares naquela zona, produtora de, pelo menos, uma dezena de espécimes fora do normal. Lembro o Luciano, que era tramado para a pancadaria; uma vez saiu disparado para o exterior do, à data, famosíssimo café, catedral de francesinhas e girafas (caneca de cerveja de enormes proporções), para se meter numa briga, em que uma mão cheia de mânfios, como chamávamos aos da nossa idade que não conhecíamos, batia desalmadamente num outro, também, para nós, absolutamente desconhecido. A refrega durou pouco. O Luciano chegou, como era seu timbre e, pancada neste, chuto naquele e murro no outro, desfez a contenda, correndo com o grupo dos “corajosos”. Regressado e questionado pelas razões que o levaram a intervir, a resposta surgiu pronta: com ele por perto, nunca seria possível a um bando de cobardes bater num gajo só! Ele tinha essa missão – equilibrar estas situações! Mais a mais, andar à pancada fazia-lhe bem, acalmava-o ….
Mas agora, e aqui, quero recordar o Toninho. O da viagem à Póvoa, no comboio da linha da Trindade, que não era rápido, nem confortável ou seguro, de tal maneira que, ainda mal havíamos passado os primeiros túneis, já uma cabeça aparecia no lado de fora da janela, no extremo inferior do corpo que se prendia precariamente ao tejadilho da carruagem, pelos pés! Como se isso não bastasse, dava o Toninho fortíssimos murros na janela e gritava que a queria aberta, porque estava a ficar cansado e desejava entrar. Não nos fizemos rogados (com ele nunca se sabia, podia acontecer estar a falar verdade e cair a qualquer momento) e puxámo-lo para dentro, para os assentos, onde se refastelou e afirmou, convicto, que o tempo ia mudar, porque sentia a cara fria e isso era sinal de chuva!
Ou o Toninho das idas, também em comboio, para a praia, agora na linha do norte, nos tranvias, que paravam em todas as estações e apeadeiros. Liderados por ele, entrávamos num apeadeiro sem bilheteira, que ficava perto do local onde morávamos. Na carruagem que escolhíamos, composta por três espaços de bancos e dois patamares de entrada, intermédios, ocupávamos um destes, enchendo-o.
A segunda coisa a fazer, depois de tomar o cuidado de ocupar o patamar mais afastado da carruagem onde andava o revisor, era abrir o ar, acto praticado com religiosa devoção e obrigatoriedade. Consistia em puxar um botão que cortava o sistema hidráulico de fecho das portas, para apanharmos a frescura do vento com os nossos rostos corados.
De seguida, aguardávamos. Quando o revisor chegava, avançava em nossa direcção, fazendo o seu trabalho, de forma paulatina e profissional. O seu bilhete, por favor? Clique, clique, aqui o tem, muito obrigado. O seu bilhete, por favor, de novo o som da dupla trincadela do alicate e do agradecimento final. Não tem bilhete? Entrou em? Vai para? Muito bem, são cinco e quinhentos. Não tem troco? Isto está mau, há poucas moedas …
Quando estava junto do patamar que preenchíamos, e o comboio parava numa estação (ou apeadeiro, parava dezenas de vezes!), saíamos todos e entrávamos no patamar que já tinha sido “trabalhado” pelo revisor. Ficava vazio o que estava à sua frente e cheio o que ficava nas sua costas. Muitas vezes o víamos a olhar para trás, com o sobrolho franzido. Mas tinha uma tarefa a cumprir, que não abandonava. Passava a cumpri-la de forma mais célere, para acabar a carruagem e voltar ao patamar agora superlotado. Não tenho memória de isso, alguma vez, lhe adiantar grande coisa. Quando conseguia regressar, estávamos cá fora, na estação da praia, todos mais o Toninho, a rir às gargalhadas do olhar frustrado que o “pica”, como carinhosamente o tratávamos, assumia nessa altura.
Arreliar os mais velhos era o desporto favorito do Toninho. O vadio parava à porta do café, para sair um passageiro. Quando se preparava para seguir, o nosso herói saía em grande velocidade e tirava os tróleis dos fios eléctricos. Lá vinha o condutor repor os alimentadores de energia, para poder continuar a viagem. E vinha outra vez. E outra. Só lá para a quarta ou quinta, o Toninho desistia, com pena do homem, alegava. Eu sempre achei que era o resultado directo da ameaça feita pelo sujeito, de chamar a polícia se ele continuasse!
A sua travessura mais deliciosa, para nós, consistia na chamada do táxi que passava a essas horas tardias. Era certinho: parava e ligava o taxímetro. Leve-me a casa, por favor, dizia o Toninho ao entrar pela porta traseira, junto ao passeio. Sim senhor, sem problemas! E a sua casa é onde? É aqui mesmo, e saía pela outra porta, atravessando a avenida e caminhando em direcção a casa, acompanhado pelos insultos do taxista, que não via piada nenhuma naquilo!
Se calhar foi por isso, por gostar tanto de se meter com os mais velhos, que não chegou a essa condição. Ou por ter mudado tanto, pois passou a temer as mais seguras e pacatas aventuras. Ou, e isto é o mais certo, por ter sido atingido por mal danado, que o levou pouco depois. Ficaram estas memórias e a imagem, que evoco regularmente, do padrinho do meu filho.
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