terça-feira, 10 de abril de 2007

Saberes e Talentos

Sempre existiu uma relação íntima entre os Carvalho e os cavalos. Como criadores, adestradores ou simples utilizadores, os membros da família habituaram-se a partilhar a vida com estes nobres, fiéis e inteligentes animais.
O meu avô Francisco, por exemplo, era criador, o que pressupunha ser conhecedor e comerciante. Tinha um saber quase inato, que lhe permitia escolher sempre os melhores e, depois de os reproduzir e ensinar, ganhar ainda um bom pecúlio com a sua venda.
Sei que, num dado ano (e estaremos a falar do início do século XX), todos os cavalos que tinha, e que andavam, regularmente, libertos no pasto, foram roubados. Sendo sinónimo de riqueza, à época, eram também essenciais para as deslocações, num tempo em que o automóvel dava as primeiras curvas e o comboio ainda não era resposta para esse tipo de necessidades. Com a ajuda de dois amigos chegados, o avô Francisco partiu, em busca do seu tesouro. Passaram serras, montes, vales e planícies, subiram e desceram, deram voltas e seguiram em frente, dia após dia.
Quando já desesperavam, encontraram os ladrões. Estavam às portas de Leiria, pelo que palmilharam, seguramente, uns 400 Km. As coisas estiveram feias, até porque o sino da igreja foi tocado a rebate, atraindo toda a freguesia. Mas a determinação, a sagacidade e a rapidez com que o trio agiu retirou qualquer hipótese de resistência à recuperação de todos os animais, feito que foi concretizado com êxito pleno.
Dos filhos que teve, dois herdaram o talento para a criação de cavalos. O mais velho, mais sensato e sério, tratou de organizar a sua vida em torno dessa sua competência. Já vos falei dele, o meu tio Ezequiel, com que cresci e de quem guardo imensas saudades. O mais novo, conheci mal, mas era mais brincalhão, mais irreverente. Muito jovem, partiu para o Brasil, onde viveu e morreu. Só estive com ele uma vez (que me lembre) e adorei a sua forma de ser. Tinha uma característica mais: era um conhecedor extraordinário de cavalos. As pilecas ou os campeões não tinham segredos para o meu tio João.
Lembro uma história que me contaram, há tanto tempo que já esqueci o autor: o João Carvalho gostava e sabia tanto de cavalos que resolveu comprar um, excepcional nas suas qualidade, embora padecesse de um pequeno problema. Nesse tempo, numa terra vizinha (creio que era Fervença) havia um sujeito que se achava muito conhecedor de cavalos, bem mais do que qualquer outra pessoa, fosse de onde fosse. E então na semana da supra referida compra feita pelo meu tio é que ele andava da língua, em gabarolice. Cansado de tanta prosápia, o meu tio resolveu tentar uma pequena brincadeira no sábado seguinte, na feira do lugar. Se bem o pensou, melhor o fez. Montou o cavalo recém-adquirido e foi à feira, onde exibiu o animal. Aproximou-se o outro especialista e analisou a montada. Sempre que se chegava perto do cavalo, este levantava a cabeça, resfolegava e recuava (com a ajuda de um alfinete, com que o meu tio o picava, nas aproximações do interessado). Que era uma estampa, sim senhor; muito bonito e elegante; que tinha bons dentes e pêlo asseado; mas muito nervoso …
Conversa para aqui, conversa para ali, e a transacção consumou-se (com o meu tio a ganhar mais uns cobres, face à compra). Ah, e também com uma particularidade: até receber o cavalo nas suas mãos, ou seja, até se concretizar a compra, não reparou no defeito do bicho. Vocês já viram qual é? Pois, nem ele! Até o cavalo, que era cego, não viu!

1 comentário:

Unknown disse...

Esta era a minha história favorita. Pedia toda a noite, que meu pai me contasse. Ficava ao seu lado, imaginando como ele conseguia vender o tal cavalo cego. Ficava imaginando também cada cavalo que ele descrevia: O cara branca, o estrela na testa, o das patas brancas e outros. Cada cavalo descrito era um personagem da minha limitada imaginação, não desenvolvida com histórias da Chapeuzinho Vermelho ou da Bela Adormecida, mas sempre feliz por que estes animais eram a alegria daquele que eu admirava e admiro muito, mesmo sendo sempre mais esperto do que os outros. Já imaginou quando tal homem descobriu que meu pai o havia enganado? Só sei que não foi por isso que ele fugiu para o Brasil. Esta história um dia deixa que eu conto!!!! Saudades da prima(do lado de cá do Atlântico, sempre em bicas por causa desta saudades!)