Carvalho??
É. Nada tem a ver com o Quercus (ou até terá - já viram quanta nobreza contém, aquele porte? Soberbo!). Tem tudo com ramo. O ramo da família (minha), que carregou esse apelido. O meu avô paterno, Francisco Gonçalves de Carvalho, que o transferiu para a minha mãe. Com a tradição, eu e os meus irmãos apanhamos o Silva do meu pai. Até aqui, tudo bem. Mas ambos resolveram usar o nome do meio da minha mãe para a transferência destinada à prole. Com esta decisão (cuja razão desconheço), ficamos Gonçalves e perdemos o Carvalho.
Só agora me apercebo da falta que me faz o Carvalho. Quando recordo as pessoas que o foram (já quase todas falecidas, só resistem os poucos filhos e netos dos varões, no tal ramo dos Carvalho), mesmo sabendo que a coragem, a nobreza, a sensatez e a rectidão não são atributos hereditários ou sequer são produto de um qualquer nome, fico com a sensação de que, faltando o apelido, é mais difícil conseguir ser, daqueles, portador.
Um marcou-me mais que os outros - o meu Tio Ezequiel. Para perceberem melhor, vou contar-vos uma pequena história:
Tinha cerca de 15 anos quando, por razões que não interessam, mas que foram parvas, de certeza, me envolvi à pancada com um sujeito, na aldeia onde passava férias. Ele tinha ido à inspecção, recentemente, e era tratado, na região, por Peito D'Aço, alcunha que a família envergava há já várias gerações. Não lhe serviu de muito, recebeu mais do que distribuiu. Da refrega resultou uma ameaça terrível, por parte do Peito D'Aço: um dia destes, à noite, quando eu fosse à loja da aldeia (o que fazia todos os dias, ou melhor, todas as noites, religiosamente, porque era o único sítio com televisão), iria estar à minha espera num qualquer sítio e dar-me-ia uma sacholada (com uma enxada ou sachola, instrumento para cavar a terra)!
Não sei como, o meu Tio soube e, no dia seguinte, com os seus modos severos, disse-me que estava proibído de sair à noite, já que, não sendo meu pai, não saberia o que dizer à minha mãe (sua irmã) se algo me acontecesse. Reagi mal, com o ímpeto da idade que tinha - a da parvoíce. Que isso iria mostrar a todos que eu era um medricas, que isso me obrigava a ficar em casa sem ter nada para fazer, que isso só o meu pai poderia decidir, tudo usei. Nada feito, a decisão mantinha-se e eu, pelo respeito que lhe guardava, impeditivo de lhe desobedecer, começava a ficar desesperado.
Então, lembrei-me de utilizar uma última arma: apelar à coerência de quem era, não só aos meus olhos mas aos de todos, naquela terra, um homem de carácter. E lembrei-o de uma situação que ele havia vivido, muitos e muitos anos antes, conhecida de todos na aldeia.
Um dia, numa feira próxima (a Lameira de Agosto, a maior da região, no que respeita a gado), quando negociava uma junta de bois, um conhecido meteu-se no negócio e ofereceu mais do que ele. Acto terrível, na época. Quando alguém negociava, todos os outros esperavam o resultado. Só poderiam intervir se o negócio não se concretizasse. Por causa dessa norma consuetudinária (nascida do costume, do que se fazia, tendo a convicção que era obrigatório cumprí-la), o meu Tio e esse conhecido - que diabo, também tinha uma alcunha, era o Zé-do-Telhado da terra - andaram à pancada e, não sei se por causa dos genes, se do físico, também ele deu mais do que recebeu. E também ele sofreu uma ameça pública do Zé-do-Telhado, que lhe daria um tiro, se o visse a passar à sua porta! Pois bem, se mais depressa o disse, mais depressa o meu Tio reagiu. A partir do dia seguinte, todas as noites, durante 3 ou 4 semanas, saía de casa e andava, durante uma hora, para um lado e para o outro, na estrada em frente à casa do Zé-do-Telhado.
Quando acabei de recordar o episódio, ele ficou silencioso, a olhar para mim. Demorou alguns minutos a reagir. Depois disse-me:
- "Está bem, podes ir à loja. Tens razão. Mas antes, duas coisas - vou telefonar à tua mãe, contar-lhe o que aconteceu e vou dizer-lhe que te deixo sair. E vê lá se entendes o mais importante - eu não levei nenhum tiro, nem estava disposto a levar, se ele saísse de casa. Pensa bem nisso antes de saíres, logo à noite."
Não há coragem sem precaução - foi a lição que entendi. Não levei uma sacholada e iria ser muito difícil ao Peito D'Aço acertar-me, pois o caminho que usei para ir à loja, nos dias seguintes, era ligeiramente diferente do habitual e sempre muito bem iluminado!!
Tenho saudades dele. Às vezes, tenho demasiadas saudades.
Ah, em tempo: também não criei, para os meus filhos, o Carvalho. Se calhar porque, se lhes desse o apelido, ele não fosse tão decisivo. Afinal, eu não tenho Carvalho no meu nome.
É. Nada tem a ver com o Quercus (ou até terá - já viram quanta nobreza contém, aquele porte? Soberbo!). Tem tudo com ramo. O ramo da família (minha), que carregou esse apelido. O meu avô paterno, Francisco Gonçalves de Carvalho, que o transferiu para a minha mãe. Com a tradição, eu e os meus irmãos apanhamos o Silva do meu pai. Até aqui, tudo bem. Mas ambos resolveram usar o nome do meio da minha mãe para a transferência destinada à prole. Com esta decisão (cuja razão desconheço), ficamos Gonçalves e perdemos o Carvalho.
Só agora me apercebo da falta que me faz o Carvalho. Quando recordo as pessoas que o foram (já quase todas falecidas, só resistem os poucos filhos e netos dos varões, no tal ramo dos Carvalho), mesmo sabendo que a coragem, a nobreza, a sensatez e a rectidão não são atributos hereditários ou sequer são produto de um qualquer nome, fico com a sensação de que, faltando o apelido, é mais difícil conseguir ser, daqueles, portador.
Um marcou-me mais que os outros - o meu Tio Ezequiel. Para perceberem melhor, vou contar-vos uma pequena história:
Tinha cerca de 15 anos quando, por razões que não interessam, mas que foram parvas, de certeza, me envolvi à pancada com um sujeito, na aldeia onde passava férias. Ele tinha ido à inspecção, recentemente, e era tratado, na região, por Peito D'Aço, alcunha que a família envergava há já várias gerações. Não lhe serviu de muito, recebeu mais do que distribuiu. Da refrega resultou uma ameaça terrível, por parte do Peito D'Aço: um dia destes, à noite, quando eu fosse à loja da aldeia (o que fazia todos os dias, ou melhor, todas as noites, religiosamente, porque era o único sítio com televisão), iria estar à minha espera num qualquer sítio e dar-me-ia uma sacholada (com uma enxada ou sachola, instrumento para cavar a terra)!
Não sei como, o meu Tio soube e, no dia seguinte, com os seus modos severos, disse-me que estava proibído de sair à noite, já que, não sendo meu pai, não saberia o que dizer à minha mãe (sua irmã) se algo me acontecesse. Reagi mal, com o ímpeto da idade que tinha - a da parvoíce. Que isso iria mostrar a todos que eu era um medricas, que isso me obrigava a ficar em casa sem ter nada para fazer, que isso só o meu pai poderia decidir, tudo usei. Nada feito, a decisão mantinha-se e eu, pelo respeito que lhe guardava, impeditivo de lhe desobedecer, começava a ficar desesperado.
Então, lembrei-me de utilizar uma última arma: apelar à coerência de quem era, não só aos meus olhos mas aos de todos, naquela terra, um homem de carácter. E lembrei-o de uma situação que ele havia vivido, muitos e muitos anos antes, conhecida de todos na aldeia.
Um dia, numa feira próxima (a Lameira de Agosto, a maior da região, no que respeita a gado), quando negociava uma junta de bois, um conhecido meteu-se no negócio e ofereceu mais do que ele. Acto terrível, na época. Quando alguém negociava, todos os outros esperavam o resultado. Só poderiam intervir se o negócio não se concretizasse. Por causa dessa norma consuetudinária (nascida do costume, do que se fazia, tendo a convicção que era obrigatório cumprí-la), o meu Tio e esse conhecido - que diabo, também tinha uma alcunha, era o Zé-do-Telhado da terra - andaram à pancada e, não sei se por causa dos genes, se do físico, também ele deu mais do que recebeu. E também ele sofreu uma ameça pública do Zé-do-Telhado, que lhe daria um tiro, se o visse a passar à sua porta! Pois bem, se mais depressa o disse, mais depressa o meu Tio reagiu. A partir do dia seguinte, todas as noites, durante 3 ou 4 semanas, saía de casa e andava, durante uma hora, para um lado e para o outro, na estrada em frente à casa do Zé-do-Telhado.
Quando acabei de recordar o episódio, ele ficou silencioso, a olhar para mim. Demorou alguns minutos a reagir. Depois disse-me:
- "Está bem, podes ir à loja. Tens razão. Mas antes, duas coisas - vou telefonar à tua mãe, contar-lhe o que aconteceu e vou dizer-lhe que te deixo sair. E vê lá se entendes o mais importante - eu não levei nenhum tiro, nem estava disposto a levar, se ele saísse de casa. Pensa bem nisso antes de saíres, logo à noite."
Não há coragem sem precaução - foi a lição que entendi. Não levei uma sacholada e iria ser muito difícil ao Peito D'Aço acertar-me, pois o caminho que usei para ir à loja, nos dias seguintes, era ligeiramente diferente do habitual e sempre muito bem iluminado!!
Tenho saudades dele. Às vezes, tenho demasiadas saudades.
Ah, em tempo: também não criei, para os meus filhos, o Carvalho. Se calhar porque, se lhes desse o apelido, ele não fosse tão decisivo. Afinal, eu não tenho Carvalho no meu nome.
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