terça-feira, 10 de abril de 2007

A virtude do Gonçalves

Dois intróitos:
Já sei porque não tenho Carvalho no meu nome. A minha irmã mais velha (até por ser aquela que mais próxima esteve dos nossos ancestrais avós) disse-me que os meus pais, aquando do seu nascimento, decidiram homenagear a minha avó materna, ainda viva, Maria Gonçalves de Moura, já que o meu avô, Francisco Gonçalves de Carvalho, tinha falecido uns anos antes. O Gonçalves, como nome comum a ambos, seria a melhor forma de prestar o tributo merecido. Tendo sido essa a solução para a mais velha, bem andariam se mantivessem a decisão no que respeita aos que se seguissem - e foram 5! Assim fizeram.
Outra coisa é o tempo, como condicionante da acção e do pensamento. Em meados de 1800, altura em que aconteceu o que vou relatar, havia um entendimento de honra e virtude que não sobreviveu à voraz passagem dos anos. Ainda bem, neste caso e na minha opinião.
Perto de 1850 emigrou para o Brasil um celoricense, que carregava uma recordação pesada: teria 4 a 5 anos quando os pais, precisando de ir tratar das terras que amanhavam, o deixaram a tomar conta da irmã mais nova, a Teresinha, à data com pouco mais de 1 ano. Num momento de maior distracção, a pequena, que começava a dar os primeiros passos, saiu do local onde brincava e, de forma titubeante mas decidida, deslocou-se rapidamente para junto da lareira, tropeçando e caindo logo naquela fogueira tremenda, que não foi acesa para tal desgraça, antes para aquecer a cozinha num dia particularmente frio. Desse terrível momento resultou uma sequela medonha - a Teresinha queimou um braço de tal forma que só a amputação lhe salvou a vida, atirando-a para os braços de uma das mais terríveis heranças da época, a deficiência.
A culpa nunca largou o mais velho. Antes dos vinte anos, sendo-lhe difícil conviver, todos os dias, com a marca da sua negligência, e procurando criar condições para dotar a irmã de um futuro menos sombrio, partiu para a ex-colónia em busca de fortuna. As coisas correram bem e criou um negócio (creio que de comércio), junto com um outro emigrante, seu conterrâneo, que tinha objectivos similares. Este chamava-se Manuel Gonçalves.
Era costume (mantido por largas dezenas de anos), que o homem emigrado, quando pensava seriamente em casar, voltasse ao país de origem para encontrar a mulher para a vida e com ela se unir. O Gonçalves tomou essa decisão e comunicou-a ao sócio. Disse saber existir uma mulher muito prendada, na terra de ambos (Carvalho continua a ser a referência), que pretendia conhecer e, se tudo corresse como esperava, com ela casar. O sócio desejou-lhe felicidades e, como rodapé da conversa, aproveitou para lhe dizer que, se não fosse aquela quem ele procurava, deveria dirigir-se à casa dos seus pais para conhecer a sua irmã mais nova, cujo único defeito residia no facto de ser maneta, mas que isso não impedia que, para além de bonita, fosse uma mulher com todos os predicados que um homem de bem procura, quando pretende ligar-se para sempre (era, e é ainda, o sonho comum).
Manuel Gonçalves regressou à pátria e, para não perder tempo, já que pretendia voltar ao Brasil rapidamente, visitou de imediato a mulher que tinha referenciado. No primeiro encontro, depois das apresentações, e quando procuravam ler na intimidade de cada um, de forma a melhor se conhecerem, a dita moçoila, bonita como poucas, inteligente e honesta, enquanto falava, pegou numa maçã e cortou-lhe uma fatia, que reservou para si, empurrando o resto do fruto na direcção do pretendente. O gesto não era inocente. Significava, na linguagem dos costumes, que já não era virgem e, tendo vergonha de falar no assunto, utilizava aquela expressão simbólica para lho comunicar.
O meu avô não hesitou. Aquilo era decisivo, para si e para qualquer outro homem da época. Agradeceu a recepção e despediu-se, dirigindo-se para casa dos pais do sócio, onde conheceu a minha avó, Teresa de Jesus, conhecida na terra como a Maneta. Não voltou ao Brasil - o sócio, agora cunhado, tomou conta do negócio e financiou o início de vida do casal.
Concordo que a razão para a existência dos seus descendentes não será, aos olhos dos valores e princípios que ora vigoram, a mais agradável. Mas, se considerarmos aqueles que ordenavam a sociedade do século XIX e o que cada um de nós (os ditos descendentes) foi construindo, constrói e continuará a construir, de certeza, neste terceiro milénio, ainda bem que a virtude não é um conceito cristalizado.
Pelo que permitiu, na óptica do tempo, e pelo que hoje possibilita.
Assim sendo, ainda bem que somos, geneticamente (ou atavicamente?) virtuosos.

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