No que a seguir se conta, ocorria um erro de facto na primeira publicação, que convém emendar. Situava-se no segundo parágrafo, onde se apresentava, e apresenta, a razão que leva a personagem central a endoidecer. Por esse motivo, o que hoje e aqui se relata é diferente do que já se fez - mas a alteração é feita em nome do rigor histórico, logo deduzo que serei desculpado.
Era conhecido pelo Barbado, desde que deixara de se preocupar com o aspecto. Endoidou, diziam todos na terra, e não se enganavam muito. Não conseguiu aguentar a divulgação daquilo que só ele sabia – para além dos autores, claro.
Até o filho havia assumido como seu, bem sabendo que era o produto da infidelidade de quem mais julgara amar. Havia partido para a terra da árvore das patacas de todos os portugueses da época, procurando a sua fortuna. Mas teve que voltar, ainda antes de atingir os seus objectivos. Recebera a notícia que o ferira profundamente, de forma seca e directa: a sua mulher estava grávida de outro. Engoliu a dor, o orgulho e a vontade de reagir. Viveu o dia-a-dia sem pensar muito. Tocou a vida como se fazia com o gado, na terra - para a frente.
Até o filho havia assumido como seu, bem sabendo que era o produto da infidelidade de quem mais julgara amar. Havia partido para a terra da árvore das patacas de todos os portugueses da época, procurando a sua fortuna. Mas teve que voltar, ainda antes de atingir os seus objectivos. Recebera a notícia que o ferira profundamente, de forma seca e directa: a sua mulher estava grávida de outro. Engoliu a dor, o orgulho e a vontade de reagir. Viveu o dia-a-dia sem pensar muito. Tocou a vida como se fazia com o gado, na terra - para a frente.
O golpe fatal, que o fez desistir, aconteceu anos depois. O filho protegido tinha entrado para o seminário, num golpe de sorte. O futuro estava garantido para todos os que trilhassem essa vida de rigor e fé. No entanto, passado algum tempo, foi expulso, porque os responsáveis pela instituição souberam da sua origem pecaminosa - com a agravante do verdadeiro pai ser padre.
Por muito que matutasse, não conseguiu evitar o sofrimento. Todos saberiam e nada podia fazer para evitar os olhares de comiseração, que o iriam trespassar. Encontrou a sua saída, entrando em si. Nada mais encontrava nos outros que valesse o esforço. Continuou a lidar com os do seu sangue, mas sem dar explicações, sem aceitar piedade, sem partilhar sentimentos.
Caminhava muito. Ia, com facilidade, de Carvalho, em Celorico, até Amarante, Penafiel ou mesmo Gaia, onde morava uma sua sobrinha e afilhada. Uma vintena de léguas corridas em 2 ou 3 dias, sempre com pressa.
Morreu de forma dramática, num sofrimento atroz, que muitos consideraram o fim que perseguia, desde que cortou laços e nós. Perseguido por miúdos, que todos sabemos tão capazes da extrema doçura quanto da crueldade mais requintada, na festança que os caracteriza quando descobrem a diferença frágil no outro, caiu por uma ladeira e, na levada que corria lá no fundo, partiu uma perna. Não aconteceu muito longe, um pouco para lá do Barroco, que o sobrinho começara a granjear. Nem parecia que fosse dar no que deu. Só que o Barbado não era capaz de manter o gesso, arrancava-o mal era colocado, gritando que precisava de liberdade para abalar. Tantas vezes o arrancou, tantas vezes se feriu, tantas vezes tentou sair do leito que o corpo cedeu.
Lembro um pequeno episódio que me foi contado por quem o tratava por padrinho. Chegado ao Porto, era seu costume dirigir-se ao local onde ela trabalhava e gritar ou cantar por ela, fazendo-a passar “por vergonhas”, como me dizia com um sorriso de boa memória. Assim, para evitar males maiores, arrastava-o para sua casa, no centro de Gaia, onde tratava dele, dando-lhe de comer, lavando-lhe a roupa o deixando-o ficar dois ou três dias a dormir na cave, fria e húmida, mas suficiente para o afastamento que o tio Barbado procurava, constantemente.
Numa dessas visitas, a afilhada vestiu-lhe uma camisa do marido, enquanto se propunha levar a sua ao rio, para as lavadeiras tratarem dela, junto com outra roupa que precisava ser lavada. Antes de sair de casa, depois da anuência do tio, verificou que os botões eram de madrepérola, de uma riqueza que só reconhecia, nesses tempos de enormes dificuldades, pelo inesperado da descoberta. Rápida como só ela sabia ser, substituiu-os por outros, parecidos apenas na cor, que guardava na caixa da costura. De certeza que os novos ficariam bem na camisa domingueira do homem e o tio, doido e sem ligar ao que o rodeava, nem deveria notar a diferença.
Satisfeita consigo mesma, foi ao rio – na realidade um tanque, que aproximava o Douro das casas – onde entregou a roupa às senhoras que prestavam esse serviço a quem, como ela, trabalhava fora. Mal a tarefa ficou concluída, pegou na roupa e dirigiu-se a casa, onde a colocou a secar.
Dois dias depois, o tio Barbado informou que se ia embora e pediu à afilhada a sua camisa. Depois de ela lha entregar e quando se preparava para a vestir, olhou espantado para os botões. Entre alguns palavrões, que caracterizavam a sua forma de reagir aos contratempos, surgiu célere a acusação de roubo! Os seus botões não eram aqueles, eram outros. Onde estavam, onde estavam, repetia aos gritos.
Envergonhada, a sobrinha tentou, em desespero, uma última cartada. Foram as lavadeiras, enquanto esperava pela roupa, deve-se ter distraído e elas trocaram os botões. Foi, de certeza, o que aconteceu, padrinho.
Cada vez mais indignado e usando todo o tipo de linguagem que se lembrava, ele perguntou-lhe se ela achava que o podia enganar assim, tão facilmente! A ele! Que sabia tão bem como ela que a agulha e a linha não correm em tecido molhado!
Foi o suficiente. 5 minutos depois, com os botões de madrepérola no seu devido lugar, o Barbado partia. O seu nome era João Carvalho e foi meu tio-avô. A sobrinha e afilhada era a minha mãe e servia-se desta história para me mostrar a justeza da expressão que mais gostava de usar, quando queria demonstrar que a honestidade deve nortear, sempre, as nossas acções: “apanha-se mais depressa um mentiroso que um coxo”.
Caminhava muito. Ia, com facilidade, de Carvalho, em Celorico, até Amarante, Penafiel ou mesmo Gaia, onde morava uma sua sobrinha e afilhada. Uma vintena de léguas corridas em 2 ou 3 dias, sempre com pressa.
Morreu de forma dramática, num sofrimento atroz, que muitos consideraram o fim que perseguia, desde que cortou laços e nós. Perseguido por miúdos, que todos sabemos tão capazes da extrema doçura quanto da crueldade mais requintada, na festança que os caracteriza quando descobrem a diferença frágil no outro, caiu por uma ladeira e, na levada que corria lá no fundo, partiu uma perna. Não aconteceu muito longe, um pouco para lá do Barroco, que o sobrinho começara a granjear. Nem parecia que fosse dar no que deu. Só que o Barbado não era capaz de manter o gesso, arrancava-o mal era colocado, gritando que precisava de liberdade para abalar. Tantas vezes o arrancou, tantas vezes se feriu, tantas vezes tentou sair do leito que o corpo cedeu.
Lembro um pequeno episódio que me foi contado por quem o tratava por padrinho. Chegado ao Porto, era seu costume dirigir-se ao local onde ela trabalhava e gritar ou cantar por ela, fazendo-a passar “por vergonhas”, como me dizia com um sorriso de boa memória. Assim, para evitar males maiores, arrastava-o para sua casa, no centro de Gaia, onde tratava dele, dando-lhe de comer, lavando-lhe a roupa o deixando-o ficar dois ou três dias a dormir na cave, fria e húmida, mas suficiente para o afastamento que o tio Barbado procurava, constantemente.
Numa dessas visitas, a afilhada vestiu-lhe uma camisa do marido, enquanto se propunha levar a sua ao rio, para as lavadeiras tratarem dela, junto com outra roupa que precisava ser lavada. Antes de sair de casa, depois da anuência do tio, verificou que os botões eram de madrepérola, de uma riqueza que só reconhecia, nesses tempos de enormes dificuldades, pelo inesperado da descoberta. Rápida como só ela sabia ser, substituiu-os por outros, parecidos apenas na cor, que guardava na caixa da costura. De certeza que os novos ficariam bem na camisa domingueira do homem e o tio, doido e sem ligar ao que o rodeava, nem deveria notar a diferença.
Satisfeita consigo mesma, foi ao rio – na realidade um tanque, que aproximava o Douro das casas – onde entregou a roupa às senhoras que prestavam esse serviço a quem, como ela, trabalhava fora. Mal a tarefa ficou concluída, pegou na roupa e dirigiu-se a casa, onde a colocou a secar.
Dois dias depois, o tio Barbado informou que se ia embora e pediu à afilhada a sua camisa. Depois de ela lha entregar e quando se preparava para a vestir, olhou espantado para os botões. Entre alguns palavrões, que caracterizavam a sua forma de reagir aos contratempos, surgiu célere a acusação de roubo! Os seus botões não eram aqueles, eram outros. Onde estavam, onde estavam, repetia aos gritos.
Envergonhada, a sobrinha tentou, em desespero, uma última cartada. Foram as lavadeiras, enquanto esperava pela roupa, deve-se ter distraído e elas trocaram os botões. Foi, de certeza, o que aconteceu, padrinho.
Cada vez mais indignado e usando todo o tipo de linguagem que se lembrava, ele perguntou-lhe se ela achava que o podia enganar assim, tão facilmente! A ele! Que sabia tão bem como ela que a agulha e a linha não correm em tecido molhado!
Foi o suficiente. 5 minutos depois, com os botões de madrepérola no seu devido lugar, o Barbado partia. O seu nome era João Carvalho e foi meu tio-avô. A sobrinha e afilhada era a minha mãe e servia-se desta história para me mostrar a justeza da expressão que mais gostava de usar, quando queria demonstrar que a honestidade deve nortear, sempre, as nossas acções: “apanha-se mais depressa um mentiroso que um coxo”.
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