domingo, 1 de julho de 2007

Cascata de S. João

.
.
.

.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Um exemplo recente de cascata de S. João
.
.
Já o contei aqui, mais que uma vez. Fui menino feliz, na minha rua e na minha aldeia. Relembro as coisas boas que me aconteceram, e não são poucas as memórias que me assaltam.
.
A rua onde nasci e cresci fica no centro de Gaia, uma cidade que, já nessa altura, era cosmopolita e de dimensão notória. Mas o local da minha infância era calmo, reservado, plácido mesmo. A rua era estreita e em terra batida, o que afastava o trânsito. Registo a passagem da carroça do homem que vendia produtos de mercearia, puxada por um cavalo. Um som agudo e histérico duma gaita conseguia fazer antecipar a chegada umas boas centenas de metros. O pregão que se seguia, vibrante e prolongado - azeeeeiiiite - definiu a alcunha que o acompanhou, mesmo no tempo em que uma carrinha mostrou que o negócio era proveitoso. A chegada do azeiteiro era um momento alto, para todos os moradores.
.
Lembro-me das minhas vizinhas, a D. Amélia, calada, sorridente e sempre pronta a conversar um pouco, e a D. Rosa, da família dos donos da pasta medicinal couto, que era a mais famosa do país – à força dum reclame televisivo em que um sujeito, africano, prendia nos dentes uma cadeira e dava uma série de voltas com ela, terminando com um sorriso forte e branco, de acordo com o slogan final. A D. Rosa era mais reservada ainda, e poucas vezes a víamos ou conseguimos com ela falar.
.
Este tempo de S. João era uma reinação. Chegava-se o dia de Santo António. Todos os anos era a mesma coisa, nunca havia dinheiro para comprar os santos, e sem eles não se conseguia pedir. Mas lá aparecia, como por encanto, um Santo António, que nos lançava em correrias doidas cada vez que víamos um adulto. Um tostãozinho pró Sant’Antoninho, por favor! Depois de muitas tentativas de esquiva, o santo não come! O santo não precisa de dinheiro! Para que queres o tostão? Eu só dou pró S. João! - lá caía uma moeda, que juntávamos a outras conquistadas com tanto ou mais esforço.
.
Ao fim de dois ou três dias, tínhamos verba e íamos comprar todos quantos precisávamos: o S. João (às vezes em duplicado, um para a cascata, outro para o peditório!), os cordeiros, os pastores, o pescador, as casinhas, os moinhos, a igreja, o S. Pedro (pouco apetecido, depois do S. João ninguém dava mais nada) a vendedeira, a lavadeira … era um infindável conjunto de personagens que, colocadas estrategicamente num monte de terra erigido para o efeito, produziam uma cascata que nos deixava inchados de orgulho! Se conseguíssemos, por obra de imaginação prodigiosa, um fio de água a correr pela minúscula encosta, então tínhamos conquistado os céus!
.
A primeira vez que recebi a incumbência de pedir um tostãozinho, não reagi lá muito bem. O meu irmão fez a cascata e, como era já matulão, deu-me o S. João e mandou-me pedir a quem passasse. Mas eu era muito pequeno e envergonhado, por isso, sentado na soleira da porta, pousava o santo no degrau que ficava nas minhas costas e sonhava acordado, sem ligar a quem passava, desculpando-me sempre com a falta de transeuntes, nesse dia.
.
Ao fim de umas horas, o meu irmão, em desespero, foi para a janela. Mal chegado, apareceu no fundo da rua a D. Rosa. Vai lá, pá, corre, olha os outros que te passam à frente, gritava ele. Eu, com os olhos no chão, não tugia nem mugia. Ouvi-o a chegar e, mais por instinto que outra coisa, afastei-me. Ele saiu, furioso, e desfez a cascata com dois ou três pontapés. A chorar de raiva, entrou em casa de supetão. Nem dois minutos se passaram e estava de volta, a reconstruir o monte, com cuidado e perfeição, colocando cada personagem no sítio certo. Ao passar por mim, fez-me uma festa no cabelo e disse-me: deixa lá, amanhã ligo um tubo que arranjei na garagem à torneira da cave e a tua cascata vai ser a única com um rio. E se não quiseres pedir, não peças. Pelo menos, não ficas atrás dos outros, na cascata!
.
Sei que no dia seguinte arranjei coragem para pedir o tostãozinho da ordem, mas não me lembro se a colecta correu bem. O que lembro é que tinha a cascata de S. João mais bonita da rua. Nem o Artur, bem mais velho e com pergaminhos na arte, conseguiu uma melhor!
.
.

1 comentário:

Unknown disse...

Também sou um amante das cascatas de S.João. Desde muito novo sempre fiz a minha cascata, agora com 66 anos ainda as faço. Como actualmente vivo em Afife, aí, este ano resolvi também introduzir este maravilhoso culto pelas cascatas pegando em temas relacionados com Afife. Pode vê-la em "Afife Digital" na última semana de Junho. Gostava de trocar ideias consigo, para assim não perder o contacto com a realidade da minha cidade. Cumprimentos
Mário Aires