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Vivemos, recentemente, um período de euforia ligado ao rugby, sobretudo em função de um apuramento histórico para o mundial da modalidade. Os “Lobos”, forma como foram apelidados os jogadores da selecção nacional, nem sequer tiveram um desempenho brilhante nesta fase (tudo derrotas), mas a satisfação continuou a dominar as gentes lusas. Se não serviu para muito mais, permitiu-me recordar um excepcional ser humano, jogador na década de 80XX, que conheci aquando do cumprimento do SMO (Serviço Militar Obrigatório), em Mafra.
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Em meados dessa década, no Convento de Mafra, na parte ocupada pelo Exército, por volta do mês de Março, assentou praça (ou seja, deu entrada no Exército, para servir a pátria) um grupo de mancebos (os que, pela primeira vez, eram incorporados) que seria muito similar a outros que também ali começaram a aprender a arte da guerra. Não os distinguia o cabelo (que todos rapavam, forma excelente de nivelar as personalidades, como vim a constatar), a roupa envergada (verdes e castanhos por todo o lado) ou o aprumo (que, rápida e uniformemente, todos atingiam); se algo os diferenciava, centrava-se no tipo ou qualidades das pessoas, quer nas que instruíam, quer nos aprendizes. Não tenho dúvidas que outros foram marcantes, noutras épocas, mais ou menos remotas. Mas, neste tempo concreto, MP apartava este conjunto de jovens mais ou menos maduros dos mais que se possam invocar.
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MP assumia cerca de 2 metros de altura, ombros largos que triangulavam com uma cintura seca e limpa, onde os extremos da comida ou da cerveja ainda não tinham feito mossa. Capitaneava a selecção nacional de rugby e contribuía para uma época de sucessos mais ou menos relevantes, na cena da competição internacional.
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A sua força era mítica. Todos ficavam espantados com a quantidade de elevações que contabilizava na trave fixa (dezenas delas, levando o queixo a tocar na barra horizontal, tarefa sempre difícil aos que pesavam, como ele, mais de 100 quilos), nas flexões perfeitas, nos abdominais ritmados, em todas as tarefas que solicitavam o uso dos músculos. Mais tarde, aquando dos testes de terreno para escolha de oficiais e sargentos, acartava com tudo o que fosse peso, para ajudar à sua superação. Como não podia deixar de ser, acabou sargento).
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As topográficas (saídas pelas tapadas, fosse a militar, fosse a real), sobretudo as nocturnas, eram bem mais acessíveis para aqueles que conviviam, de perto, com o MP. Saíamos cheios de genica (que a vontade nunca era significativa), com tudo às costas: arma, mochila com equipamento e botas suplentes, farda de trabalho, capacete de ferro, enfim, uns largos quilos de peso que somavam aos do corpo e acabavam por nos derrear, na parte final da caminhada.
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Era aí que surgia o MP. Quando as forças nos abandonavam, quando a vontade era lançar tudo, nós inclusive, ao chão e por lá ficar, ele vinha, pegava na arma de um, de dois, de três ou mais camaradas, ajeitava-as o melhor possível junto ao seu corpo, pegava em dois parceiros, dos mais desfalecidos, encaixava-os debaixo dos braços, permitia ainda que mais dois ou três se lhe atrelassem o melhor que podiam e, muitas horas depois da partida, reentrava no quartel.
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Na parada (local onde as tropas desfilavam, nos dias de exibição), largava a “carga” e, com um sorriso enorme, gritava para os instrutores: “já acabou? Tão cedo? Tão depressa? Isto foi uma autêntica passeata!”
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Nunca falhava. Por causa disso, ainda dávamos uma dezena de voltas à parada, mais a arrastar os pés que a caminhar. O que nos aguentava era o seu bom humor, nos encorajamentos que lançava: “vá lá, vá lá. Sempre é melhor andar aqui fora, ao ar livre, que ir fazer companhia às pulgas e aos piolhos da camarata! Devem estar geladinhos, coitados, sem o nosso calorzinho …”
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Passou à reserva em pouco tempo. Uma placa de platina num braço chegou para uma Junta Médica livrá-lo da tropa. Pelos vistos, diminuía-o, fisicamente … embora na selecção nacional de rugby (e no seu clube) isso não interessasse nada! Continuou a jogar, numa e noutro, por muitos e longos anos.
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