terça-feira, 15 de maio de 2007

Um destino diferente

.
.
Chamo-me Danadinho. Fui o quarto filho dos 5 que irromperam, em finais dos anos setenta, quase em simultâneo, num canto da despensa escura e húmida, onde a mamã procurou passar despercebida, acto atávico que não entendia mas que percebeu logo de manhãzinha, quando os patrões, alertados pelos nosso gemidos, nos pegaram, mediram e pesaram, tudo por estimativa.

Foi, aí, dado o primeiro passo para o desmembramento da família, forma única encontrada para garantir a velhice à mamã, que ocupava, havia muito, o lugar primeiro do carinho da família hospedeira.

Com toda a naturalidade, algumas semanas passadas (poucas, muito poucas, na minha perspectiva), em função dos estranhos que nos iam visitando, lá fomos entregues a gente humana diversa, com igual diversidade nas razões da escolha feita, o que carreava a cada um de nós maior ou menor felicidade, no destino traçado.

Tinha um pêlo mais comprido que os outros, com variados tons de cinza, o que me tornava apetecível, face aos maninhos. Tanto quanto sei, fui muito cobiçado e, por sorte, calhou-me na rifa uma família numerosa mas bem formada, onde fiz o meu desmame com o mínimo de sofrimento – a imagem da mamã apagou-se, lenta e serenamente, em poucos dias.

Eles eram 7 (mais do que nós, pois nunca lobriguei o meu progenitor – até pensava, ignorante na minha juventude, que nem existia!):
A mãe Deolinda, que me alimentou (com um biberão nos primeiros tempos e, posteriormente, com restos deliciosos) e sempre cuidou do meu bem estar, de tal forma que, uma vez, abriu-me as goelas à força e, com um alicate, arrancou uma maldita espinha que estava cravada na minha garganta;
O pai Carlos, que pouco ou nada me ligava, o que eu pagava na mesma moeda;
As raparigas, a Linda e a Mariita, que me coçavam as orelhas e alisavam o pelo de forma gostosa e meiga;
E os três rapazes, os dois mais velhos, o Kiel e o Jonas, menos exuberantes, o pequenito bem mais próximo, todos os dias me procurava e afagava. Tenho que ser honesto, gostava muito deste, do Zezito, para criança não me fazia muitas judiarias, mas foi o Kiel que me baptizou e, manias à parte, o meu nome era especial. Dizia ele que, para suceder à dinastia dos Artolas (e houve 3, o Artolas, o Artolas II e o Artolas III, o primeiro sem numeração apenas por não ser expectável a continuação da nomenclatura, tão seguidamente acontecida), só podia ser um danado como eu aparentava ser. Não enganei, foi assim que cresci e vivi.
.
Falo deles com nostalgia porque os perdi, ao contrário da evolução natural das coisas – os nossos 10 a 14 anos de vida significam, quase sempre, que nos calha, a nós, desaparecer. Sei que não durei mais do que qualquer um deles, mas eles é que partiram, um dia, mudando de casa e não me levando, como acontecia com outras famílias.

Eu tinha a minha maneira de ser, porventura mais peculiar que os meus congéneres – dormia com os rapazes, de manhã fazia o meu dejejum também com os meninos, mas depois abalava para a minha primeira passeata. A casa tinha quintal, como todas as confinantes, sendo as propriedades separadas por muros de meia altura, que eu transpunha com toda a facilidade. Aliás, era em cima deles que gostava de apanhar sol, um dos meus vícios de miúdo que mantive ao longo da vida.

Por volta do meio-dia e no final da tarde fazia as minhas rondas, com um único objectivo: verificar o que era a paparoca em cada casa. Depois, com naturalidade, aproximava-me daquela que mais me agradava e esperava – havia sempre um pratinho para mim, fosse qual fosse a casa a que me dirigia.

Nunca deixava de visitar a minha família (eles achavam que eu lhes pertencia mas, de facto, eles é que eram meus). No entanto, eram mais as vezes em que apenas cumprimentava a gente e me estendia, para a sesta ou para passar a noite, do que para comer qualquer coisa que fosse.

No dia da mudança, todos se juntaram e, depois de muita choradeira delas e do petiz, lá decidiram que eu ficaria. Afinal, ainda que num tempo onde a publicação de estudos característicos da silly season não acontecia, a minha família percebeu que eu pertencia mais ao lugar do que às pessoas (o que acontece com todos os gatos) e que ficaria bem entregue, com vizinhos tão atenciosos para comigo. Inteligentemente, deixaram que fosse eu a escolher o novo lar – para dormir e receber carinhos, já se vê.

A única recomendação que sobrou foi a que sempre me fizeram, desde a minha chegada, ou seja, para continuar a não me aproximar dos pombos do Violeiro, disseminador de veneno que nos era destinado, só porque apreciávamos as suas tenras criaturas. Coisas de velho, que não atingiam sábios como eu. Afinal, ainda cá andava no 25 de Abril!
.
.


1 comentário:

Eu disse...

Gostei...gostei muito.