domingo, 6 de maio de 2007

In Illo Tempore


Adorava dormir em colchão de palha, entre frescos e ásperos lençóis de linho, no quarto do fundo, a que se chegava passando pelo da frente, o dos meus tios, detentor de uma sacada repleta de vasos.
A casa era minhota em toda a sua traça. O espaço de habitação situava-se no andar de cima, com duas entradas servidas por íngreme escada, de degraus incertos e largos.
No primeiro patamar, de fronte para o quinteiro, acedia-se à cozinha, ampla e escura, sem janelas e com chaminé diminuta, que retinha mais do que libertava o fumo da lareira. Se servia na perfeição para defumar os enchidos e presuntos, também contribuiu fortemente para o grave problema de pulmões que atormentou o meu tio, praticamente até à sua morte.
Mais alguns degraus e assumia a entrada da sala de jantar, espaçosa e clara, com tecto de forro, ondulado e picotado por inúmeras marcas, que o tempo consolidou. Uma cama, normalmente destinada às visitas inesperadas ou mais consideradas, juntamente com um roupeiro, da mais fina madeira, não destoava, nem nos dias em que se jantava, de facto, ali – raridade muito apreciada, não obstante ser a cozinha bem mais acolhedora, sobretudo nos dias mais frios. Era servida por uma janela, com dois bancos de pedra, frente a frente, que possibilitavam, se essa fosse a vontade, momentos de cumplicidade, reservada aos que aí se enfrentassem.
Ao fundo, os referidos quartos que nos serviam, numa curva apertada que impedia a visão do mais recuado.
O piso inferior tinha cortes, uma por baixo dos quartos, onde normalmente se hospedava um cavalo, com outra interior, ao fundo, para o porco passar o dia. Fechada a porta e tapadas as frinchas com fetos, ficava o espaço livre do incómodo das moscas, donas de picadas tão dolorosas quanto sanguinárias.
Seguia-se a loja, com a caixa do cereal e do milho, as pipas do verde tinto, de sabor peculiar e incomparável, o pipo do vinagre – autêntica pólvora, que me agarrou definitivamente o paladar - a salgadeira, o presunto e as pás penduradas, tudo à volta da urdideira, sarilho enorme na sua função, sendo moldura da passagem quando descansava, fechado. À porta, o galinheiro da noite, no contraforte das escadas, só com uma pequena abertura, que se fechava com umas tábuas de madeira, seguras com cavacos encravados – protecção essencial contra as raposas, que a rede do galinheiro de dia nunca seria capaz de travar.
Logo após as escadas, quem vinha da costeira, ficava o lagar de pedra, duas vezes cheio nos anos de fartura, com a prensa e os utensílios da lavoura. Era aí que ficava o nicho da chave de casa, depositada sempre que todos saíssem, para longe. Doutro modo, a porta ficava ou toda aberta, ou encostada.
Mais uma corte, para acolher os bovinos, quando não havia segundo cavalo, situando-se, por cima e com entrada própria, o tear, onde a minha tia, rainha das tecedeiras de toda a região, construía mantas e cobertas como eu nunca vi, lá ou noutro lugar. Gostava particularmente das mantas de retalhos, que ela criava com maravilhosas combinações de cores e padrões, e das cobertas de linho, com o alvo algodão a desenhar motivos e figuras inesquecíveis. Ah, e as franjas, feitas num tear de bolso, em movimentos repetitivos, cantados por batimentos transformadores do gesto criador num centro de interesse que aprisionava o olhar.
Ficava concluída a casa pelo arrumo da madeira, contíguo ao tear, e, bem lá longe, também de madeira, pouco ortodoxa, mesmo algo insegura, ficava a retrete – nem se podia chamar de maneira diferente ao buraco na tábua, numa casota, com uma porta segura por um arame, uns bons metros para lá do edifício, para o não contaminar.
Os rituais eram deliciosos. Depois do almoço, o meu tio encostava as costas à porta da cozinha e deixava-se escorregar até ficar sentado na soleira, com uma caruma na boca, palitando preguiçosamente os dentes. Era a hora da sesta, sagrada, protectora do calor abrasador do verão minhoto, capaz de calar todos os sons e aplacar a mais ténue brisa.
As ordens eram claras – todos tínhamos que dormir umas duas horas, para fazer a digestão. Por isso, era obrigado a preparar a fuga, antes mesmo de entrar para almoçar. Dirigia-me à corte do cavalo e abria a porta, prendendo o cavalo à manjedoura. Se questionado, dizia que era tempo de ele ter alguma luz, pobre coitado. Até as moscas e os moscardos estavam recolhidos, por causa do calor, que diabo!
A porta, aberta, ficava com o topo ao nível do chão da sacada, logo prendia-a bem à parede, para ficar firme. Quando chegava a hora da sesta, ia até ao quarto e deitava-me. Alguns minutos depois ia à cozinha, pela porta que a ligava à sala, e espreitava o meu tio. Como sempre, já dormitava, acenando com a cabeça para ninguém. Voltava atrás, chegava-me à sacada e, passando o corpo para fora, descia pela porta da corte, correndo de imediato para longe de casa, ao encontro da total liberdade que os campos, as casas, as árvores e os rios da aldeia me dotavam.
Um sorriso meu, enigmático, respondia ao meu tio quando, à noite, com um olhar interrogativo, me dizia não ter percebido a minha saída. Estou convencido que, de facto, nunca conheceu a minha estratégia. Nos últimos anos, nem sequer usava a referida corte, o que muito me facilitou a vida.
Arrependo-me de algumas coisas que fiz. Não desta. Sei que, aos seus olhos, não teve grande importância. Ele sabia bem o quão importantes eram todos os segundos ali passados, para o menino da cidade que ele recebia, ano após ano, de braços abertos.

1 comentário:

Bibliotecaescolar disse...

Adorei este texto!
Zé, tens mesmo de pensar em escrever um livro de crónicas, ou, melhor ainda, escrever alguns contos.
Fizeste-me relembrar o meu colchão de palha e o quanto me custou a habituar-me ao de molas. A palha, juntamente com o cheiro do sabão rosa ou azul com que se lavavam os lençõis,tinha, de facto um cheiro que me parece estar a sentir agora.
Obrigada por este momento.