domingo, 27 de maio de 2007

Invernos saudosos

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O Inverno, na aldeia minhota, tinha (ainda terá?) duas épocas distintas: de Dezembro a meados de Fevereiro era fechado, com húmido recolhimento e saídas pontuais para responder às necessidades do dia-a-dia, penso para o gado, lenha para o lume, alguma poda serôdia; já a segunda metade tinha outra vivacidade, com as pessoas a sair em cada aberta, a preparar terrenos e sementes, plantar batatas e semear cereais, os primeiros, que produziriam também os primeiros bens terrenos.
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Celorico, no fim do inverno
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O que mais me agradava, nas poucas vezes que ia a Celorico nesta época, entroncava na melancolia da paisagem e na água cristalina, cantando pelas bordas das leiras ou explodindo tumultuosamente do leito da levada, incapaz de penetrar na terra ensopada e regressando às suas origens na primeira oportunidade.
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Também apreciava o batuque do tear, que tinha redobrado trabalho nesta época de pousio, podendo a minha tia Augustinha dedicar-se mais à sua arte dos tecidos, no lugar da lide agrícola, que lhe tomava o tempo quase todo no resto do ano.
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A entrada para o tear, na casa dos meus tios, entretanto vendida.
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A cor das laranjas, palhotas e pouco ou nada doces, já de si pouco atraentes no aspecto, com o negro da terra impregnado na casca, carregado pelo vento e pela chuva, destacavam-se no verde pesado das árvores. Mirravam nos finos dedos das torres que as suportavam, ou melhor, que as largavam com muita regularidade em chão pejado de estrepes, restos da cana do milho que saíam do solo em afiados cortes oblíquos, armadilhas dolorosas para os que, como eu, também neste tempo frio e aguado, andavam descalços por tudo quanto era sítio.
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A única opção existente eram os socos do meu tio, quando eram por si rejeitados face à sua vetustez ou degradação, ou ainda quando esperavam os protectores pedaços de pneu, que evitavam o desgaste precoce mas, ao mesmo tempo, os colocavam na minha trajectória de pesquisa.

Uma das diversões do fim do dia, quando este crescia e clareava, consistia no exercício que o meu tio facultava ao cavalo, para que os músculos se não atrofiassem e a noite de sono fosse mais repousante. Um de nós, normalmente eu, ficava junto da casota do Tejo (sobreviveu, por muitos anos, ao seu ocupante), no intuito de impedir a fuga para sul, ficando o meu tio no lado contrário, no topo da costeira, com o mesmo fito, embora permitindo ao cavalo virar à esquerda e usar um corredor, sem saída, com cerca de duas dezenas de metros de extensão.
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Solto, o cavalo carregava na minha direcção e eu, com uma dezena de anos, levantava os braços, segurando numa bengala e gritando a plenos pulmões para o obrigar a parar. Não era uma questão de medo, era terror puro! Aquela massa brutal virada a mim, em velocidade acelerada, era uma visão terrífica!
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No entanto, o que acontecia era sempre o mesmo. Quando estava a meia dúzia de passos da minha pessoa, o cavalo parava, deslizando no chão e projectando uma enorme quantidade de terra e poeira que se depositavam por todo o meu corpo. Ainda não tinha conseguido recomeçar a respirar, já o animal tinha virado e corria direito ao meu tio, que só levantava os braços no último momento.
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À noite, à mesa, o assunto da conversa entre os meus tio era sempre o mesmo: a cara que eu fazia no momento crucial! Ambos se riam e comentavam que eram dignas de se ver, as caretas que eu fazia.
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Mais a sério, o meu tio comparava, amiudadas vezes, o meu comportamento corajoso (achava ele!) face ao do seu filho mais velho, antes de casar e abalar para Coimbra, onde ainda vive. Ficava no lugar que ora me destinava, no exercício hípico, e o ritual era costumeiro. O meu tio soltava o cavalo e gritava para o filho: ele aí vai, Avelino! Ao que respondia o filho: ele aí vem, meu pai, ele aí vem … e ele lá vai! Porque, em vez de o parar, cautelosamente fugia para o lado, deixando-o passar e ir correr montes e vales, até o meu tio o conseguir resgatar.
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A relação entre o meu primo e os cavalos não foi, nunca, muito íntima. Mas lá diz o povo, em todas as famílias há, quase sempre, quem não saia aos seus.
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terça-feira, 15 de maio de 2007

Um destino diferente

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Chamo-me Danadinho. Fui o quarto filho dos 5 que irromperam, em finais dos anos setenta, quase em simultâneo, num canto da despensa escura e húmida, onde a mamã procurou passar despercebida, acto atávico que não entendia mas que percebeu logo de manhãzinha, quando os patrões, alertados pelos nosso gemidos, nos pegaram, mediram e pesaram, tudo por estimativa.

Foi, aí, dado o primeiro passo para o desmembramento da família, forma única encontrada para garantir a velhice à mamã, que ocupava, havia muito, o lugar primeiro do carinho da família hospedeira.

Com toda a naturalidade, algumas semanas passadas (poucas, muito poucas, na minha perspectiva), em função dos estranhos que nos iam visitando, lá fomos entregues a gente humana diversa, com igual diversidade nas razões da escolha feita, o que carreava a cada um de nós maior ou menor felicidade, no destino traçado.

Tinha um pêlo mais comprido que os outros, com variados tons de cinza, o que me tornava apetecível, face aos maninhos. Tanto quanto sei, fui muito cobiçado e, por sorte, calhou-me na rifa uma família numerosa mas bem formada, onde fiz o meu desmame com o mínimo de sofrimento – a imagem da mamã apagou-se, lenta e serenamente, em poucos dias.

Eles eram 7 (mais do que nós, pois nunca lobriguei o meu progenitor – até pensava, ignorante na minha juventude, que nem existia!):
A mãe Deolinda, que me alimentou (com um biberão nos primeiros tempos e, posteriormente, com restos deliciosos) e sempre cuidou do meu bem estar, de tal forma que, uma vez, abriu-me as goelas à força e, com um alicate, arrancou uma maldita espinha que estava cravada na minha garganta;
O pai Carlos, que pouco ou nada me ligava, o que eu pagava na mesma moeda;
As raparigas, a Linda e a Mariita, que me coçavam as orelhas e alisavam o pelo de forma gostosa e meiga;
E os três rapazes, os dois mais velhos, o Kiel e o Jonas, menos exuberantes, o pequenito bem mais próximo, todos os dias me procurava e afagava. Tenho que ser honesto, gostava muito deste, do Zezito, para criança não me fazia muitas judiarias, mas foi o Kiel que me baptizou e, manias à parte, o meu nome era especial. Dizia ele que, para suceder à dinastia dos Artolas (e houve 3, o Artolas, o Artolas II e o Artolas III, o primeiro sem numeração apenas por não ser expectável a continuação da nomenclatura, tão seguidamente acontecida), só podia ser um danado como eu aparentava ser. Não enganei, foi assim que cresci e vivi.
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Falo deles com nostalgia porque os perdi, ao contrário da evolução natural das coisas – os nossos 10 a 14 anos de vida significam, quase sempre, que nos calha, a nós, desaparecer. Sei que não durei mais do que qualquer um deles, mas eles é que partiram, um dia, mudando de casa e não me levando, como acontecia com outras famílias.

Eu tinha a minha maneira de ser, porventura mais peculiar que os meus congéneres – dormia com os rapazes, de manhã fazia o meu dejejum também com os meninos, mas depois abalava para a minha primeira passeata. A casa tinha quintal, como todas as confinantes, sendo as propriedades separadas por muros de meia altura, que eu transpunha com toda a facilidade. Aliás, era em cima deles que gostava de apanhar sol, um dos meus vícios de miúdo que mantive ao longo da vida.

Por volta do meio-dia e no final da tarde fazia as minhas rondas, com um único objectivo: verificar o que era a paparoca em cada casa. Depois, com naturalidade, aproximava-me daquela que mais me agradava e esperava – havia sempre um pratinho para mim, fosse qual fosse a casa a que me dirigia.

Nunca deixava de visitar a minha família (eles achavam que eu lhes pertencia mas, de facto, eles é que eram meus). No entanto, eram mais as vezes em que apenas cumprimentava a gente e me estendia, para a sesta ou para passar a noite, do que para comer qualquer coisa que fosse.

No dia da mudança, todos se juntaram e, depois de muita choradeira delas e do petiz, lá decidiram que eu ficaria. Afinal, ainda que num tempo onde a publicação de estudos característicos da silly season não acontecia, a minha família percebeu que eu pertencia mais ao lugar do que às pessoas (o que acontece com todos os gatos) e que ficaria bem entregue, com vizinhos tão atenciosos para comigo. Inteligentemente, deixaram que fosse eu a escolher o novo lar – para dormir e receber carinhos, já se vê.

A única recomendação que sobrou foi a que sempre me fizeram, desde a minha chegada, ou seja, para continuar a não me aproximar dos pombos do Violeiro, disseminador de veneno que nos era destinado, só porque apreciávamos as suas tenras criaturas. Coisas de velho, que não atingiam sábios como eu. Afinal, ainda cá andava no 25 de Abril!
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domingo, 6 de maio de 2007

In Illo Tempore


Adorava dormir em colchão de palha, entre frescos e ásperos lençóis de linho, no quarto do fundo, a que se chegava passando pelo da frente, o dos meus tios, detentor de uma sacada repleta de vasos.
A casa era minhota em toda a sua traça. O espaço de habitação situava-se no andar de cima, com duas entradas servidas por íngreme escada, de degraus incertos e largos.
No primeiro patamar, de fronte para o quinteiro, acedia-se à cozinha, ampla e escura, sem janelas e com chaminé diminuta, que retinha mais do que libertava o fumo da lareira. Se servia na perfeição para defumar os enchidos e presuntos, também contribuiu fortemente para o grave problema de pulmões que atormentou o meu tio, praticamente até à sua morte.
Mais alguns degraus e assumia a entrada da sala de jantar, espaçosa e clara, com tecto de forro, ondulado e picotado por inúmeras marcas, que o tempo consolidou. Uma cama, normalmente destinada às visitas inesperadas ou mais consideradas, juntamente com um roupeiro, da mais fina madeira, não destoava, nem nos dias em que se jantava, de facto, ali – raridade muito apreciada, não obstante ser a cozinha bem mais acolhedora, sobretudo nos dias mais frios. Era servida por uma janela, com dois bancos de pedra, frente a frente, que possibilitavam, se essa fosse a vontade, momentos de cumplicidade, reservada aos que aí se enfrentassem.
Ao fundo, os referidos quartos que nos serviam, numa curva apertada que impedia a visão do mais recuado.
O piso inferior tinha cortes, uma por baixo dos quartos, onde normalmente se hospedava um cavalo, com outra interior, ao fundo, para o porco passar o dia. Fechada a porta e tapadas as frinchas com fetos, ficava o espaço livre do incómodo das moscas, donas de picadas tão dolorosas quanto sanguinárias.
Seguia-se a loja, com a caixa do cereal e do milho, as pipas do verde tinto, de sabor peculiar e incomparável, o pipo do vinagre – autêntica pólvora, que me agarrou definitivamente o paladar - a salgadeira, o presunto e as pás penduradas, tudo à volta da urdideira, sarilho enorme na sua função, sendo moldura da passagem quando descansava, fechado. À porta, o galinheiro da noite, no contraforte das escadas, só com uma pequena abertura, que se fechava com umas tábuas de madeira, seguras com cavacos encravados – protecção essencial contra as raposas, que a rede do galinheiro de dia nunca seria capaz de travar.
Logo após as escadas, quem vinha da costeira, ficava o lagar de pedra, duas vezes cheio nos anos de fartura, com a prensa e os utensílios da lavoura. Era aí que ficava o nicho da chave de casa, depositada sempre que todos saíssem, para longe. Doutro modo, a porta ficava ou toda aberta, ou encostada.
Mais uma corte, para acolher os bovinos, quando não havia segundo cavalo, situando-se, por cima e com entrada própria, o tear, onde a minha tia, rainha das tecedeiras de toda a região, construía mantas e cobertas como eu nunca vi, lá ou noutro lugar. Gostava particularmente das mantas de retalhos, que ela criava com maravilhosas combinações de cores e padrões, e das cobertas de linho, com o alvo algodão a desenhar motivos e figuras inesquecíveis. Ah, e as franjas, feitas num tear de bolso, em movimentos repetitivos, cantados por batimentos transformadores do gesto criador num centro de interesse que aprisionava o olhar.
Ficava concluída a casa pelo arrumo da madeira, contíguo ao tear, e, bem lá longe, também de madeira, pouco ortodoxa, mesmo algo insegura, ficava a retrete – nem se podia chamar de maneira diferente ao buraco na tábua, numa casota, com uma porta segura por um arame, uns bons metros para lá do edifício, para o não contaminar.
Os rituais eram deliciosos. Depois do almoço, o meu tio encostava as costas à porta da cozinha e deixava-se escorregar até ficar sentado na soleira, com uma caruma na boca, palitando preguiçosamente os dentes. Era a hora da sesta, sagrada, protectora do calor abrasador do verão minhoto, capaz de calar todos os sons e aplacar a mais ténue brisa.
As ordens eram claras – todos tínhamos que dormir umas duas horas, para fazer a digestão. Por isso, era obrigado a preparar a fuga, antes mesmo de entrar para almoçar. Dirigia-me à corte do cavalo e abria a porta, prendendo o cavalo à manjedoura. Se questionado, dizia que era tempo de ele ter alguma luz, pobre coitado. Até as moscas e os moscardos estavam recolhidos, por causa do calor, que diabo!
A porta, aberta, ficava com o topo ao nível do chão da sacada, logo prendia-a bem à parede, para ficar firme. Quando chegava a hora da sesta, ia até ao quarto e deitava-me. Alguns minutos depois ia à cozinha, pela porta que a ligava à sala, e espreitava o meu tio. Como sempre, já dormitava, acenando com a cabeça para ninguém. Voltava atrás, chegava-me à sacada e, passando o corpo para fora, descia pela porta da corte, correndo de imediato para longe de casa, ao encontro da total liberdade que os campos, as casas, as árvores e os rios da aldeia me dotavam.
Um sorriso meu, enigmático, respondia ao meu tio quando, à noite, com um olhar interrogativo, me dizia não ter percebido a minha saída. Estou convencido que, de facto, nunca conheceu a minha estratégia. Nos últimos anos, nem sequer usava a referida corte, o que muito me facilitou a vida.
Arrependo-me de algumas coisas que fiz. Não desta. Sei que, aos seus olhos, não teve grande importância. Ele sabia bem o quão importantes eram todos os segundos ali passados, para o menino da cidade que ele recebia, ano após ano, de braços abertos.