domingo, 11 de novembro de 2007

Espreitar por cima do ombro

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Que tempos, aqueles! As candeias, tremeluzentes, eram a única fonte de luz, mal o sol desaparecia nos cumes das serranias que cercavam, e ainda cercam, esta terra profundamente minhota.
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O colchão de palha, mexida todos os dias, para repor a textura perfeita para a noite seguinte, estava coberto por ásperos lençóis de linho, frios e duros aquando da ida para a cama. Estes rapidamente se enchiam dum calor acolhedor, confortante, donde só saía um nariz envergonhado, à procura do ar fresco que limpava a alma, enquanto dormíamos.
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Os cobertores, pesados e sufocantes nas noites mais frias e cristalinas do fim da primavera, iam diminuindo em número conforme o tempo aquecia, mantendo uma sensação de conforto que se não esquece.
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Os grilos e os ralos cantavam uma canção constante, eterna, pelo menos nas noites de verão, sem com isso impedir a chegada do sono, retemperador embora inquieto, sobre uma miríade de imagens mentais, que povoavam os sonhos da nossa satisfação.
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Claras e brilhantes, centradas nas gotas de orvalho pousadas nos picos do mato, as manhãs corriam em direcção ao almoço sem parar, com o sol a começar a amadurecer os campos e a secar as fontes mais tímidas, de minas pouco ambiciosas e não muito fundas.
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O vinho verde, quase sempre tinto, que o branco pouco se fazia, era tão mais saboroso quanto mais pintasse a malga, nos movimentos circulares que os entendidos lhe provocavam, para melhor o conhecer. Arranhando na garganta, dizia-se que tinha alma, nascida tanto da qualidade da uva quanto do produto que, comedidamente, se lhe juntava no momento de engarrafar - bem trabalhoso, com o lavar de dezenas ou centenas de garrafas, todas de verde profundo e duro. A rolha de cortiça era apetrecho que não faltava.
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Falta referir o presunto, os enchidos e a bola de carne, cozida no forno a lenha, enquanto este aquecia e esperava a massa da boroa de milho, que só lá e nesse tempo se podia chamar de caseira. E o azeite, sem preocupações de acidez ou de qualidade, as batatas, com um sabor que só aquela terra, de pousio e rotação, lhe conseguia dar, a sopa – meu Deus, a deliciosa sopa feita nos potes de ferro fundido, com pedaços do lume repousando na superfície, fosse de vagens ou de penca …
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Mais valerá não falar sequer do frango caseiro, das febras do porco que era imolado nos dias mais frios, da carne das vitelas que pastavam nos campos ou eram alimentadas nas cortes - isso significava algo que, agora, só se insinua nas saídas para o interior mais profundo do país, sobretudo para lá do Marão.
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